Artigo: CRÔNICA DA BOCA DO MATO, de Mauro Almada

CrôniCaRioca
As recordações sobre os bairros da Boca do Mato, Méier e Lins de Vasconcelos emocionarão a todos, mesmo aqueles que não conhecem os lugares descritos. Ao tempo em que observa que “estampas, relatos e cenários dos bairros suburbanos são muito raros”, as memórias de Mauro Almada passeiam pela paisagem urbana e natural daquela parte da Zona Norte do Rio de Janeiro e preenchem uma lacuna.
O olhar atento ainda na década de 1960 e a absorção da urbe com riqueza de detalhes e sensibilidade, recentemente transformados em palavras, por certo já apontavam a profissão que o autor desta CrôniCaRioca abraçaria: a arquitetura e o urbanismo.
Boa leitura.

Urbe CaRioca

A Boca do Mato, no meu ‘mapa mental’.
Desenho do autor
  
CRÔNICA DA BOCA DO MATO*
 Mauro Almada
Paisagens… recordações
Porque até o que se vê
Com primeiras impressões
Algures foi o que é,
No ciclo das sensações.

 Fernando Pessoa, 1931
Para um não especialista, escrever sobre o tema ‘paisagem’ mais parece um exercício de memória visual. Que paisagens teriam ficado gravadas no meu filme mental? Recorro aqui a Fernando Pessoa que, na abertura do Cancioneiro, define ‘paisagem’ como “tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepção”. E mais: “Todo estado de alma é uma paisagem (…) uma tristeza é um lago morto dentro de nós”. Ou seja: interior e exterior, sentimentos e sentidos, se entrelaçando no processo de percepção e consciência do mundo.

Fellini, em seu genial Amarcord – que significa ‘eu me recordo’, no dialeto de sua cidade-natal, Rimini – nos brinda com um comovente registro das paisagens de sua infância; e Antonioni, em Blow-up – que significa ‘ampliação’ – fotografa e revela as mais belas cenas já filmadas num parque deserto e tipicamente inglês – o Maryon Park, em Londres –, onde o vento é o personagem principal.
 

Em Amarcord, a fascinante chegada de um transatlântico na provinciana Rimini.
Crédito: http://esperandogodard.blogspot.com
Em Blow-up, a famosa cena do parque, onde Thomas [David Hemmings]
fotografa a misteriosa personagem encarnada por Vanessa Redgrave. 
Crédito: http://media-2.web.britannica.com

A iconografia paisagística carioca é rica em registros do Centro da cidade, da Baía de Guanabara, da Floresta da Tijuca e da Zona Sul, mas estampas, relatos e cenários dos bairros suburbanos são muito raros.

Nos anos 60, morei no centro de um triângulo formado pelos bairros da Boca do Mato – nos anos 20, batizada de “a Suíça carioca” –, Lins de Vasconcelos e Méier, e me espanto com a velocidade das mudanças que varreram aquela região. O local era um sítio meio-rural, meio-urbano, com casas modestas, centenas de vilas, um ou outro prédio baixo sem elevador, pequenos sítios e chácaras, e extensos terrenos baldios. Ao Sul, vislumbrava-se a imponente Serra dos Pretos Forros – à época, já desmatada, mas ainda pouquíssimo ocupada –, espetada por imensas torres de transmissão da Light, vaquinhas pastando, e a granítica Pedra Sete, hoje encoberta pelas construções. Minha rua terminava no sopé do morro, onde as nascentes do Rio Jacaré formavam a Cachoeira Grande e a Cachoeirinha. Ali, lavadeiras batiam roupa e um embrião de favela, com barracos de madeira e tetos de zinco, se formava em meio às cabras vadias. Nas ruas, completamente desertas de carros, e ainda primorosamente calçadas com paralelepípedos, organizávamos animadas ‘peladas’ futebolísticas, interrompidas apenas para a passagem do bonde ‘Boquinha’, em cujos trilhos moíamos cacos de vidro para preparar cerol de pipa.


O lendário ‘Boquinha’…

Crédito: www.luiz.delucca.nom.br

…e o esquisito ‘papa-fila’ da linha 106: Lins-Urca.

Crédito: www.ciadeonibus.com


No Córrego Méier, já bastante poluído por esgotos, coletávamos, com puçá, peixes ‘barrigudinhos’ para aquários; e nos matagais de capim-navalha, próximos à Vila do Xerife, capturávamos inocentes biquinhos-de-lacre, com visgo derretido enrolado em arame. Num extenso descampado, para os lados da estação de Todos os Santos, havia o Campo do Mirim, um típico time de futebol de várzea. Nos anos 70, toda essa área foi urbanizada e ali se ergueu um conjuntão, tipo BNH/COHAB.

As ruas e casas eram bastante arborizadas, com mangueiras, amendoeiras, fícus – infestados, no verão, pela temível praga dos ‘lacerdinhas’ –, flamboyants, extremosas e jasmins-manga. Por ali, todo mundo tinha jardim e quintal, que no verão se regava ao cair da tarde, ouvindo o canto das cigarras. Isto depois que Carlos Lacerda providenciou a água do Guandu. Antes dele, nos sentíamos verdadeiros flagelados urbanos, formando filas para encher baldes e panelas no poço artesiano da Igreja Cristo Rei, o único da região. As madrugadas de vigília, à espera do líquido vital, são de fato ‘inesquecíveis’. Quando os imensos tubulões chegaram, foi uma festa só, pois dentro deles cabia até um homem em pé… e a UDN nunca mais perdeu eleição na vizinhança !

Carlos Lacerda – o polêmico ‘Corvo’ –, ladeado pelo arquiteto Maurício Roberto e o poeta Manuel Bandeira, na inauguração da ESDI: Escola Superior de Desenho Industrial.

Crédito: www.esdi.uerj.br


Havia também a arquitetura: barracos de teto de zinco, casas em estilo Missionescalifornianas, vilas e ‘avenidas’ interessantíssimas, e meia dúzia de obras modernistas, que as pessoas simples achavam ‘esquisitas’. Entre elas, uma joia rara, o Edifício Antonair, ainda hoje semipreservado, e uma residência bárbara, do arquiteto Carlos Frederico Ferreira, que anos mais tarde fui descobrir publicada numa L’Architecture d’Aujourd’hui ! Mas os mais importantes ‘monumentos’ do pedaço eram a Igreja do Imaculado Coração de Maria, no Jardim – inclinado ! – do Méier, projeto de Adolfo Morales de los Rios em estilo neomourisco, e o cinema Imperator, o maior da América Latina, em estilo déco, com belíssima decoração inspirada na flora amazônica, de autoria desconhecida. Sua galeria de acesso, iluminada com moderníssimas lâmpadas neon, abrigava, à época, temíveis gangues de ‘transviados’, pilotando lambretas e paramentados com topetes-brilhantina e jaquetas de couro, numa versão sixty dos atuais pitboys.



Residência modernista do Dr. Nair José Vieira, na Rua Carijós (demolida)
arquiteto Carlos Frederico Ferreira

Crédito: L’Architecture d’Aujourd’hui


Basílica do Imaculado Coração de Maria; arquiteto Adolfo Morales de los Rios.

Crédito: http://pt.wikipedia.org

Outros recuerdos dessa communityisolada e provinciana, distante meia hora a pé da estação do Méier; uma hora de bonde, da Cinelândia; e uma verdadeira eternidade, da praia de Copacabana – pois não existiam os túneis Rebouças e Santa Bárbara, nem o Aterro do Flamengo – são o carnaval da Chave de Ouro, localidade afamada pelo Bloco da Quarta Feira de Cinzas – sistematicamente dissolvido a porretadas pela polícia –, as carroças de lixo puxadas a burros – desativadas apenas nos anos 60; dá p’ra acreditar ? –, o padeiro e o leiteiro a domicílio, o afiador de facas e o funileiro – um romeno fugitivo da II Guerra –, o pontual carteiro Armando, os porcos e cavalos soltos nas ruas, as festas de São João por toda parte, e o incrível céu de junho, coalhado de estrelas e balões, onde apontávamos a Via Láctea, o Cruzeiro do Sul e as Três Marias.

Desconfio que nesse tempo – em que ‘criminalidade urbana’ era roubo de gaiola de passarinho ou vaso de planta; e ‘computador’, um troço de ficção científica –, o Rio de Janeiro era uma cidade feliz e não sabia.
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*Publicado originalmente in Jornal da Paisagem, ago 2000. Republicado inRevista ViverCidades nº 29, dez 2009.

  1. Foi no Boca do Mato, no RIO, onde nasceu aquela que é considerada por muitos a maior cantora brasileira de jazz, Leny Andrade, que passou boa parte da sua vida morando nos Estados Unidos e na Europa, diva maravilhosa que difundiu a nossa música brasileira.

    Para os corações apaixonados e partidos, sugiro como tema a canção “Beijo Distraído” – Leny Andrade & Romero Lubambo (virtuoso violonista): https://www.youtube.com/watch?v=kJpN5BcqXVo

    (…)
    Um dia a gente dá um beijo distraído
    E aí olha nos olhos, comovido
    E vê que não há mais nada pra falar
    E pensa que tudo se acabou sem compromisso

    E o que restou do amor é apenas isso
    Um tempo que se esvai pra nunca mais
    E agora que a vida ficou mesmo complicada
    E já não há vontade de mais nada

    Nem de dizer adeus, nem de ficar
    No entanto, nem tudo se perdeu completamente
    Eu sigo com você na minha mente
    Me leve dentro do seu coração

  2. Meu tio avô, o português Antônio Rodrigues que construiu o Edifício Antonair, entre outros no Meier. Sua esposa, irmã da minha avó, era Nair, por isso o nome.

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