PATRIMÔNIO DO RIO: DECISÕES ALÉM DA COMPETÊNCIA

PARQUE DO FLAMENGO

Em pelo menos dois casos recentes que envolvem pareceres do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional–IPHAN, procedimentos administrativos que tratam do licenciamento de obras e intervenções em bem culturais tombados foram invertidos e resultaram em decisões altamente questionáveis. As consequências podem ser desastrosas para a Cidade do Rio de Janeiro. Foram eles:

1.    A construção de um Centro de Convenções e de Shopping com 50 lojas no trecho do Parque do Flamengo onde se situa a Marina da Glória, área projetada e executada no início dos anos 1960, e tombada em 1965 pelo órgão federal citado;

2.    A construção irregular de casas no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, espetacular patrimônio carioca criado em 1808 logo após a transferência da Corte Portuguesa para o Brasil pelo então Príncipe Regente, nosso futuro rei D. João VI, e tombado em 1938, também pela instância federal.



Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Lago das Vitórias-Régias
Foto: Blog Check In Pelo Mundo



Conforme já explicado em outros textos, o Parque do Flamengo é uma área pública non-aedificandi, bem de uso comum do povo, na qual podem ser erguidas apenas as construções previstas no plano de volumes original, conforme os objetivos do ato especial e específico que o protegeu contra futuras tentativas de ocupação, e definiu uso e as atividades possíveis no lugar. Na ponta do parque onde se situa a marina é possível construir na projeção de cerca de 1500,00m² com altura aproximada de 6,00m.


Portanto, em consulta que jamais poderia ser feita o empreendedor solicitou ao IPHAN Nacional (em Brasília-DF) que aprovasse projeto para construção de complexo comercial de grande porte, com 20.000,00m² e 15,00m de altura. O órgão de “proteção” manifestou-se com um “de acordo” inexplicável que extrapola suas competências.


Quanto ao Jardim Botânico, trata-se também um parque público. Do mesmo modo que na Marina da Glória, não existem índices construtivos vigentes. Em tese, as construções erguidas regularmente são aceitas quando decorrem das atividades pertinentes à função do parque em si – o lazer contemplativo, o estudo e a pesquisa. Não é o que ocorre em relação às ocupações polêmicas construídas à revelia das normas e sob os olhar condescendente dos “políticos de plantão”, durante três décadas. Hoje mais de 600 famílias entendem ter o direito de morar no local, assunto que envolve questões de diversas naturezas que estão além do que se pretende aqui analisar: questão do uso do solo e os procedimentos administrativos.

O IPHAN pronunciou-se favoravelmente ao pleito dos moradores, conforme notícia publicada no jornal O Globo em 29/03/2013. O Instituto apôs o ‘de acordo’ à permanência de 316 casas irregulares no Jardim Botânico (305 serão removidas), mais um ato estranho e questionável, à vista das características da área tombada cujos aspectos histórico, paisagístico e ambiental são a sua razão de ser. Segundo a mesma notícia, a proposta desagradou à Associação de Moradores do Jardim Botânico e ao movimento SOS Jardim Botânico. A Associação de Moradores do Horto é favorável, por óbvio. O Ministério do Meio Ambiente ainda se pronunciará.



Jornal O Globo 30/03/2013

A jurista Sonia Rabello explicou em detalhes o imbróglio em que se transformou a ocupação indevida e afirma que “… as autoridades executivas federais, sejam elas quais forem, não têm, legalmente, poderes de dispor, ou não, dos espaços do Jardim Botânico do Rio”. Adiante, os links e alguns parágrafos dos artigos da professora e ex-Procuradora Geral do Município. Os destaques são nossos:


30/03/2013 – Jardim Botânico e Marina da Glória: coerência do mal – ‘Por que tem sido feito isso nestes dois casos de tanta importância e similaridade: a apropriação privada de duas áreas públicas de uso do povo, tombadas, unidades de conservação, indivisíveis, inalienáveis por direito? Podemos dizer que essas autoridades do IPHAN estão seguindo uma nova regra espúria, coerentemente; as autorizações para modificação e mutilação dos bens públicos tombados serão dadas em função de quem as pede? Agirão a favor da ruína das políticas de preservação do nosso patrimônio cultural’?
04/09/2012 – Jardim Botânico do Rio: verdades e mentiras – legais – ‘Se o Jardim Botânico, o seu espaço público, é protegido por leis especiais – pelo tombamento, pela lei de unidades de conservação, pelo Plano Diretor da cidade do Rio – este espaço é inegociável pelas autoridades de plantão, sejam elas federais ou municipais.  E as autoridades executivas federais, sejam elas quais forem, não têm, legalmente, poderes de dispor, ou não, dos espaços do Jardim Botânico do RioIsso porque a área do Jardim Botânico está, por lei, afetada (destinada) às suas atividades de uso comum do povo e de uso especial científico. Portanto, só lei federal específica poderá autorizar qualquer forma de alienação de parte do Jardim Botânico’.
16/10/2012 – Jardim Botânico e a Arte de Administrar Conflitos – ‘Os conflitos na área do Jardim Botânico encerram interesses fundiários federais, posses, moradia, direitos de preservação do patrimônio cultural nacional, direitos de preservação do patrimônio ambiental, demarcação patrimonial de bens da autarquia federal Jardim Botânico, e seu contraponto com a administração dos bens públicos federais, feito pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU). 

Site AMAHORTO – sem data


Concordamos com a Professora Sonia Rabello e entendemos que cabe ao IPHAN opinar apenas se uma lei urbanística geral – zoneamento e índices urbanísticos de um bairro -, ao incidir sobre um bem tombado, na vizinhança deste, ou na sua área de influência, poderá causar interferências. As consequências da futura intervenção devem obrigatoriamente ser avaliadas pelo órgão público que tem a tutela do bem. 


Caso este entenda que o resultado trará prejuízos de qualquer ordem ao bem protegido, poderá restringir a aplicação das normas e reduzir os índices respectivos, no âmbito de sua atribuição que é proteger o respectivo bem cultural de impactos negativos.


Há casos em que o próprio tombamento, sua regulamentação, ou leis supervenientes criam os índices adequados, como ocorre em relação ao Parque do Flamengo. Um exemplo é o entorno do Outeiro da Glória onde gabaritos de altura fixados são mais baixos do que os do resto da vizinhança para garantir a visibilidade do morro e da magnífica igreja. Na falta desses parâmetros caberá a manifestação do IPHAN, INEPAC* ou Conselho de Patrimônio Cultural da Prefeitura, caso a proteção se dê na esfera federal, estadual ou municipal, respectivamente.


Os órgãos de Patrimônio Cultural não têm competência administrativa para criar índices construtivos onde a lei não os fixou, nem de liberar índices vigentes para maior. São atribuições específicas do Poder Legislativo. Por isso, em regra, esses colegiados reduzem parâmetros gerais para adaptá-los à vizinhança do bem cultural protegido e garantir sua integridade, características, visibilidade, harmonia com o entorno, singularidade e individualidade.


Do ponto de vista administrativo é equivocado recorrer aos pareceres daqueles setores para usá-los como justificativa para liberar o que é indevido, impossível, como no caso da Marina da Glória e do Jardim Botânico. Repete-se à exaustão a inverdade que a concordância do IPHAN é base para as demais aprovações. Busca-se desesperadamente uma aura de legalidade. Mas, até aqui, o Poder Judiciário já se manifestou e não lhes deu guarida!


Os erros sucessivos não acontecerão mais se os órgãos de patrimônio cultural fizerem só o que lhes cabe: fiscalizar, orientar e quando necessário, restringir.


Ampliar gabaritos e apoiar usos proibidos são procedimentos invertidos e irregulares que têm posto em risco nosso patrimônio natural e construído. São inaceitáveis.


JARDIM BOTÂNICO DO RIO DE JANEIRO, Lago das Vitórias-Régias
Foto: Blog Best Brazil



NOTAS

1 – *INEPAC – Instituto Estadual de Patrimônio Cultural (órgão de patrimônio cultural do Estado do Rio de Janeiro)
2 – O Jornal O Globo de hoje informa que está em análise pelo órgão de Patrimônio Cultural da prefeitura novo uso para o prédio da antiga Mesbla em Botafogo. É um ótimo exemplo para ilustrar este texto. O imóvel é tombado. Analisa-se a transformação em prédio de lojas e escritórios. Uso e índices urbanísticos devem estar atendidos. Cabe ao setor verificar o respeito aos critérios de tombamento.

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