GUARATIBA: DE ZONA RURAL A LAMAÇAL – Parte 1




Os acontecimentos relacionados à Jornada Mundial da Juventude com a transferência dos eventos programados para o bairro de Guaratiba, Zona Oeste do Rio, devido ao alagamento do chamado de Campo da Fé, geraram polêmica e questionamentos sobre a escolha do lugar.O “limão” do qual o prefeito pretendeu fazer uma limonada ao anunciar a construção de um bairro popular foi retratado em O “BRAINSTORM” DO ALCAIDE.

Seguem levantamento de dados e algumas considerações sobre a Zona Oeste do município do Rio de Janeiro. Por ser assunto vasto – e a legislação urbanística bastante complexa, como é de amplo conhecimento -, além de estar aberto para comentários, gostaríamos de receber sugestões, críticas e eventuais correções, a serem incluídos a seguir na ‘Parte 2’ do tema, que pretendemos elaborar.

Sobre a região e a política urbana recente já publicamos no blog o texto A CIDADE CRESCE PARA… GUARATIBA.


Urbe CaRioca

A ZONA OESTE DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO – SOBRE O ZONEAMENTO




Ao menos desde a época em que a Cidade do Rio de Janeiro era Distrito Federal a região de Guaratiba era classificada como área agrícola. Conforme o Código de Obras da então Capital da República (Decreto 6000/1937 que consolidou as normas existentes) a Zona Rural e Agrícola – ZA destinava-se ‘de um modo geral a fins agrícolas e habitação’. Outras atividades do comércio, indústria e apoio – escolas e hospitais, por exemplo – eram construídas a critério da Prefeitura.

Nas alterações naturais das leis urbanísticas no Rio ao longo do tempo – tanto planos gerais como casuisticamente – para a maior parte da gigantesca Zona Oeste do Rio manteve-se aquelas características, na letra da lei e na prática: exacerbou-se o uso residencial, tanto induzido pelo poder público, por exemplo, com a construção de grandes conjuntos habitacionais, como pelas inúmeras ocupações irregulares decorrentes de invasões e do abandono, por parte do loteador, de loteamentos licenciados.

Uma exceção é o caso da Barra da Tijuca, parte retirada da antiga ZA no final da década de 1960, transformada em Zona Especial, e objeto do Plano Piloto de Lucio Costa com seu traçado urbano “moderno” feito na escala do modelo rodoviário que abrigaria as torres isoladas, algumas de Niemeyer.

O projeto ambicioso ofereceu a nova região ao crescimento urbano da cidade e definiu que para lá um dia iria o Centro do Rio. Abriu-se o caminho oficial para o poente, consolidado com as grandes obras viárias que viriam em seguida: Elevado do Joá, túneis, e uma ainda incipiente Avenida das Américas ladeada por imenso areal.


Plano Piloto para a Baixada de Jcarepaguá
Lúcio Costa


Deve-se ressaltar que por mais criticado que seja o plano então futurista, o arquiteto estabeleceu que a área mais a oeste da Barra da Tijuca deveria ser deixada “como está”, mantidas suas características rurais por muito tempo. Parece que o tempo foi mais curto do que o urbanista imaginou: cedo vieram o Projeto de (Des)Estruturação Urbana da Região das Vargens, um “Parque” dito Olímpico no lugar do Autódromo do Rio, e muitas outras benesses urbanísticas para o mercado imobiliário: por exemplo, um Campo de Golfe na área de reserva ambiental anterior ao Plano Piloto que fora mantida por Costa.

Voltando à região mais a oeste da Zona Oeste, além da Barra da Tijuca, Recreio, Vargem Grande, Vargem Pequena e Camorim, tanto o Regulamento de Zoneamento de 1970 (Decreto nº 3800) quanto seu sucessor de 1976 (Decreto nº 322) mantiveram as características das antigas áreas agrícolas e residenciais de baixa ocupação, o último classificando o local predominantemente como Zona Residencial 6 (ZR-6).

Nas ZR-6 são permitidos além do uso residencial unifamiliar as atividades agropecuária, horticultura, floricultura, arboricultura, avicultura, canicultura, etc., outras atividades de apoio, e armazenagem ligada às atividades rurais. Isto explica as inúmeras chácaras, canis, e sítios que ainda sobrevivem na “Roça Invisível” retratada em matéria recente no jornal O Globo.


LOTEAMENTOS, TAMANHO DOS LOTES E O CAMPO DA FÉ

Outro fator que demonstra a intenção de manter a baixa densidade ocupacional da área é o tamanho mínimo do lote. Na ZR-6 é de 10.000,00 m² e de 50.000m², podendo ser exigidas medidas maiores ‘para a preservação de grandes áreas florestadas ou agrícolas’, ou menores, em casos justificados. Entretanto, da lama providencial surgiu a existência do loteamento chamado Vila Mar de Guaratiba, aprovado em 1953 com lotes pequenos de cerca de 300,00 m².

Salvo lei específica ou tratar-se de um projeto especial, a aprovação baseou-se no Decreto 6000/37.

O fato de que na então Zona Agrícola e Rural era também possível fazer “Habitações proletárias de tipo econômico” – pequenas casas de um andar para as classes proletárias em lotes de 225,00 m² – pode explicar a existência do loteamento Vila Mar: foram desenhados 11.374 lotes proletários, uma “cidade” de 40.000 habitantes!

Outra hipótese é a relação com as políticas de remoção de ocupações irregulares e favelas da Zona Sul, dada a época do visto nos desenhos propostos.


LOTEAMENTO VILA MAR DE GUARATIBA, 1953 (parte)
Imagem: Prefeitura 



Via de regra, porém, um loteamento NÃO IMPLANTADO nos prazos legais perde a validade e “caduca”, para usarmos a linguagem oficial. Ou seja, o Vila Mar de Guaratiba está mais do que caduco, salvo tenha sido revalidado nos últimos sessenta anos. Restaria saber se foi levado ao Registro de Imóveis e se as áreas de doação de praças, ruas, e lotes públicos foram efetivamente doadas e transferidas à propriedade da Prefeitura.

Ainda assim, como não foi realizado, parece-nos que o projeto perdeu a validade, e as normas vigentes devem ser obedecidas. Uma consulta ao setor responsável da Secretaria Municipal de Urbanismo melhor esclarecerá.


A QUESTÃO DO MEIO AMBIENTE
Guaratiba, Campo da Fé, Julho 2013
Imagem: Conexão Jornalismo

Embora as preocupações com as questões ambientais tenham sido ampliadas a partir dos anos 1980, tanto na Barra da Tijuca quanto no restante da Zona Oeste existiam medidas de proteção anteriores, como as citadas regras para as ZR-6 e a Reserva Ambiental da Baixada de Jacarepaguá, esta modificada em alguns trechos, por exemplo nas enseadas Saco Grande e Saquinho, e na APA Marapendi, aqui em especial com o caso escandaloso do Campo de Golfe dito Olímpico e a lei especial para o Hotel Hyatt.

O Macrozoneamento estabelecido pelo Plano Diretor de 1992 classificou a região como de RESTRIÇÃO À OCUPAÇÃO URBANA com a MANUTENÇÃO DOS ÍNDICES URBANÍSTICOS VIGENTES (quanto aos índices, com exceção para os bairros de Campo Grande, Senador Vasconcellos e Santíssimo).

Embora hoje não esteja ainda incluído nas Unidades de Conservação Ambiental, o local faz parte da bacia de acumulação da Serra da Capoeira, e consta nos estudos Rio Próximos 100 anos, do Instituto Pereira Passos, como área baixa sujeita a inundação, o que por si indica a inadequação para receber habitação e, talvez, qualquer tipo de construção, o que de certo modo está salvaguardado pelas restrições do zoneamento ZR-6.

Por sua vez,  o novo Plano Diretor, o conhecido “Plano Frankenstein aprovado pela Lei Complementar nº 111/2011, não obstante o foco indiscutível de sua realização – aumentar índices urbanísticos em toda a cidade e declarar explicitamente que todo o território do município é urbano no discreto artigo 13 – tem um bom capítulo de diretrizes para a proteção do Meio Ambiente.

A região em pauta, sendo alagável, enquadra-se na Seção III do Capítulo I, que trata das Áreas de Restrição à Ocupação Urbana, e deverá ter seu uso condicionado à avaliação técnica, entre diversas outras exigências e condicionantes.

O vergonhoso “Plano Frank” ao menos guarda coerência com a história recente de atenção às áreas sujeitas à proteção – o que foi descartado no já mencionado caso do famigerado Campo de Golfe e no PEU Vargens.


A REALIDADE URBANO-CARIOCA

Problemas de cidade. Em Rio das Pedras já é possível ver várias construções com quatro pavimentos.

E o canal está assoreado. / Custódio Coimbra – Legenda e foto: O Globo, 21/07/2013


No post DEMOLIÇÕES 2 – RENOVAÇÃO URBANA E A ‘CIDADE INFORMAL’ dissemos que “Tampouco a norma urbana correta seria a panaceia carioca, pois a perfeição não existe. Porém, as opções inadequadas, sem dúvida, são um veneno que destrói a boa vida urbana, ainda que lentamente”.

A decisão do Prefeito de construir um conjunto popular na região que virou lama durante a JMJ, lançada pela voz do próprio Bispo D. Orani Tempesta em meio a um evento religioso, causou espanto geral aos atentos e também nos meios profissionais afetos.

Convidado, também publicamente e diante das câmaras de televisão, a organizar um concurso público para um projeto do tipo Minha Casa Minha Vida, o Instituto dos Arquitetos do Brasil – IAB reagiu com preocupação e cautela, contrário que é à prática urbanística dessa natureza.
O Prefeito apresenta um estranho decreto que prevê a desapropriação da área particular – injetará mais verba pública pós-JMJ – , para em seguida a novas reações, declarar a Região Administrativa de Guaratiba uma AEIA – Área de Especial Interesse Ambiental, com vistas à realização de ‘estudo com o objetivo de determinar meios de proteção do meio ambiente natural e cultural…”.

Em meio a tantos meios espera-se que o resultado seja inteiramente satisfatório.

Sabe-se muito bem das carências habitacionais cariocas e brasileiras, e, mais ainda, da falta de infraestrutura urbana que permeia a maioria dos problemas.

Nada, porém, justifica qualquer ato apressado e atabalhoado que, no caso em questão, tem o propósito de resolver um problema específico: o destino da enorme área de Guaratiba para a qual já havia sido anunciada, muito antes da chuva e da lama, a transformação de áreas livres e de fazendas em condomínios, faltando apenas a aprovação de mais uma lei urbanística prometida pelo prefeito e pelo seu anterior Secretário de Urbanismo: o PEU GUARATIBA, já elaborado e do qual o público não tem ciência.

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NOTA – Tópicos PRELIMINARES para a Parte 2:

O CAMPO DA FÉ, O LAMAÇAL, A ESCOLHA INEXPLICÁVEL E UM ATERRO MILIONÁRIO

PROJETO DE ESTRUTURAÇÃO URBANA DE GUARATIBA (PEU) GUARATIBA: PERIGO À VISTA

UM CONCURSO DE PROJETO – CONVOCAR O IAB
Guaratiba – Imagem: internet

  1. Prezado Mário.
    Obrigada por ter comentado. Quanto ao PEU, de fato, é um mistério. Matéria no jornal O Globo de algum tempo atrás apontou indícios do que poderia ser. O que os moradores interessados devem fazer é procurar a Secretaria Municipal de Urbanismo para obter informações sobre o andamento das propostas. Por outro Lado, o Instituto de Arquitetos do Brasil analisa a questão a pedido do prefeito, o que também foi divulgado pela imprensa. O que eu puder analisar e outras informações recebidas poderão ser divulgadas no blog, caso considere de interesse geral. Se quiser escrever um artigo sobre a necessidade de infraestrutura e outros aspectos – dentro do perfil do blog – podemos publicar, o que acha?
    Amanhã ou depois vou divulgar um artigo do prof. Janot sobre Guaratiba.
    Se quiser podemos manter contato pelo urbecarioca@gmail.com Ab.
    Andréa

  2. Olá Andrea, sou morador da Ilha de Guaratiba, moro num sítio e tenho estado muito preocupado com a demora da regulamentação do PEU e total falta de transparência do que está sendo tratado.
    Enquanto não regulariza, as invasões estão tomando área de parque, a população aumenta e infra-estrutura é uma lenda.
    Quero me manter a par dessa discussão. E quero ter notícias sobre o andamento e discussões sobre o PEU.
    Guaratiba tem de ser mantida verde, seja bairro popular ou não.Ou seja, as áreas protegidas e áreas de parque tem de ser preservadas. Precisa também de ciclovias, postos de saúde, escolas, creches e principalmente saneamento básico.
    Mario mpgonzalez@terra.com.br

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