RIO: CRÔNICA VIVA, AGONIA, E ÊXTASE*

CrôniCaRioca

Natal 2014
Foto: Urbe CaRioca




Com o Rio à disposição não haverá papel em branco, terror de quem escreve profissionalmente ou por gosto, dizem por aí. Se faltar inspiração, rua! A crônica está pronta, é só traduzir.


De areia, pedras portuguesas, cimentado, asfalto, paralelepípedos, terra, conservado ou cheio de buracos, limpo ou sujo, somente o chão carioca já renderia muitos textos.

Se olharmos para cima outros tantos. O céu azul esplendoroso neste dezembro contraria o serviço de meteorologia e não anuncia a tormenta prometida há dias. Nas árvores, as orquídeas colocadas pela mão do homem, as flores do abricó-de-macaco exuberantes… Como andará o açacu de Copacabana? Passarinhos são poucos, poderia haver mais para me acordarem bem cedinho como nos tempos da Tamandaré, minha janela ao lado da casa de Herbert Moses, um casarão cercado de árvores onde hoje fica o nº 200, espigão em desarmonia com os outros prédios da Praia do Flamengo.

Benesses urbanísticas dos anos 1970 perpetuadas no tempo…

Mais alto ainda, gaivotas procuram cardumes, mergulhos certeiros garantem a sobrevivência e a volta do bando para casa. Onde? Biguás no sentido contrário desenham a letra “V” no céu, buscam a Lagoa Rodrigo de Freitas. Formação perfeita – não batem uns nos outros – bem poderiam ensinar aos motoristas cá em baixo as distâncias mínimas de segurança, um dirigir elegante!

Na altura mediana acima da linha do horizonte a arquitetura não agrada, salvo exceções. O Rio de Janeiro deveria ter construções mais bonitas. Quem sabe a paisagem assombrosamente bela fez o homem achar que não precisava de mais nada? No caso do Leblon e de Ipanema, prédios singelos foram protegidos, simples, sim, mas memória urbana viva, tal como em Santa Cruz, Gamboa, Laranjeiras, Botafogo, Marechal Hermes e muitos outros bairros. O último cinema do Leblon, não. Poderá ir abaixo, enquanto outros, mesmo sem uso, foram tombados quase que ao mesmo tempo em que o do bairro famoso deixou de ser bem cultural protegido.

Olhar para frente pode ser desanimador. Aqui na Zona Sul a população de rua, que não para de crescer, aumenta mais ainda com a proximidade das Festas. São grupos enormes de jovens, a maioria moças fortes de aparência saudável, aspecto que nada garante, é verdade. Elas se sentam no chão, sempre à porta de bancos ou farmácias. Outras vezes andam para abordar os passantes. Pedem com jeito de lamento. Sem ter resposta, a expressão muda até o pedido seguinte, quando os olhos caídos e o tom de sofrimento ressurgem. No final do dia se reúnem e voltam para casa, pois casas todos têm, precárias é certo. Levam sacolas enormes com fraldas, leite, roupas e comida. Vêm e vão em geral às sextas e sábados. Em dezembro, todos os dias.

Entre as muitas reflexões que as cenas despertam uma se sobressai. Todas as moças fortes carregam crianças no colo. Filhos, sobrinhos, irmãos, empréstimos… Não se sabe. As idades variam entre 3 meses e 5 ou 6 anos, os maiores vendem balas.

Há poucos dias a sensação térmica na Cidade Maravilhosa foi de 46º. Na porta da farmácia, duas moças/mulheres e dois nenéns: 3 e 5 meses. É inconcebível colocar bebês e crianças um pouco maiores em situação de risco deliberadamente.

Um momento. Quem as põe em risco? Elas mesmas ou nós todos? Tivemos sorte e elas não, ou o que faltou? Responsáveis, casa, instrução, trabalho, qualificação, orientação, família, valores? Políticas públicas, mesmo abrangentes e eficientes, desaparecem frente ao crescimento exponencial de tantos problemas.

As cenas que entristecem e ao mesmo tempo revoltam deixam qualquer um cabisbaixo. E dali, novamente ao olhar o chão, um fio de esperança no bilhete colado na pedrinha portuguesa: “Só vivemos uma vez”, dizem as letras de forma. Mais três passos e o confiante carioca deixou outro papelzinho: “Aproveite a vida”.

Leblon, Rio de Janeiro, Dezembro 2014
Foto: Urbe CaRioca

Se as moças estão aproveitando a vida, temo que não, mas fazem com ela o melhor que conseguem no momento. Se houver alternativa, viver será melhor. Ensinarão novos valores àquelas crianças tão pequenas e indefesas. Terão um futuro.


A desigualdade social pode ser combatida de muitas formas. A principal, nesse Brasil tão rico de tantas coisas, é canalizar os recursos públicos para onde eles precisam realmente ir, impedir desvios e perdas que, ao não serem aplicados em escolas, hospitais, equipamentos culturais e ações pela segurança pública, indiretamente matam o futuro de tantos.



Resta ir em frente com olhar atento em todas as direções.

Paz no Natal, Feliz 2015 e um bom futuro para todos os cariocas e brasileiros.

Urbe CaRioca

 
*NOTA: O complemento do título é emprestado do magnífico filme Agonia e Êxtase, de 1965, dirigido por Carol Reed, que narra a história da pintura da Capela Sistina, trabalho para o qual o Papa Julio II contratou Michelangelo Buonarrotti. Charleston Heston faz o papel do artista e Rex Harrison encarna o Papa. Não se sabe se o serviço foi superfaturado. Mas o legado é verdadeiro.


  1. Desde sempre Rio inspira cronicas superlativas, seja pela sua singular beleza natural, seja pela sua gente cordial e alegre, seja pela sua cultura. "O Rio de janeiro é uma natureza que se tornou cidade, e é euma cidade que se dá impressão de natureza, disse Stefan Zweig em seu classico "Brasil, um pais do futuro" publicado no final da decada dos 1930. Desde então a cidade que herdamos vem se transformando numa imens metropole. Enquanto o seu centro sofre ameaça de obsolescencia avançada de suas funções e desfigurada a qualidade pelos processos de demolição de casario historico dos bairros centrais e os crescentes problemas de congestionamento de transito, com excessivo numero de veiculos nos logradouros e, ao mesmo tempo falta a metropole um sistema eficaz de mobilidade multimodal– como a melhor alternativa de transporte urbano. A sua cronica capta e revela de forma lucida os desfios que se apresentam. A questao que não quer calar: onde está a sociedade civil para pressionar e exigir das instituições publicas que encare os desafios de forma dinamica, com ações estrategicas no equacionamento dos problemas desta cidade/metropole?

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