SEMANA SANTA, SEMPRE EM PETRÓPOLIS

                                                                                           
                                                                                         CRÔNICARIOCA

Desde que me entendo por gente, na Semana Santa vou a Petrópolis, a cidade de Pedro, nosso imperador. Se fiquei no Rio de Janeiro três vezes, foi muito.

Catedral de São Pedro de Alcântara, Petrópolis.
Foto de Waldyr Neto no blog Visitar Petrópolis


No feriado religioso a subida da serra com a família era obrigatória para curtir a casinha, o ar puro, e cumprir o ritual da Sexta-Feira da Paixão: nada de carne vermelha, sempre bacalhoada no almoço – receita da Mãe CaRioca -, à tarde visitar o ‘Senhor Morto’ na Catedral de São Pedro de Alcântara, rezar um pouco e voltar para casa um pouco antes de sair a procissão que tinha até reis em potencial.

Lá aprendi o que era matraca, pensava que fosse só quem falasse demais… Gente, o som é ensurdecedor!




Catedral de São Pedro de Alcântara, Petrópolis.
Vista Interna, nave principal.
Blog Visitar Petrópolis




À noite, canjica com leite de coco e polvilhada com canela, nada de amendoim. Que delícia! Porque será que fazemos canjica só na Semana Santa e rabanadas só no Natal? Hummm… Vou instituir uma nova modalidade: pelo menos duas vezes por ano, cada uma das gostosuras!


Petrópolis só traz boas lembranças. Claro que existem as ruins, mas as primeiras superam em muito as segundas, ainda bem!

Pequenos, meu irmão e eu nos escondíamos embaixo da mesa, proteção contra os frequentes relâmpagos e trovões assustadores, em meio a chuvas torrenciais, tudo bem pior na região do Quitandinha, Cremerie, Independência e Taquara, onde ficava a casinha. Passada a tormenta, que alívio! A mesa cumprira o seu papel e estávamos a salvo!



Palácio Quitandinha
Imagem: www.trekeart.com



Taquara era lugar de passar férias, lugar de brincar. Não para todos. As irmãs Alda e Valda, 14 e 12 anos, trabalhavam no hotel onde brincávamos. Eu gostava da Valda, éramos da mesma idade, ela era paciente com minhas perguntas sobre o funcionamento da mesa telefônica, que coisa complexa, ramais, pinos, furos, cordinhas para lá e para cá encontravam depressa o lugar certo ao primeiro trrriiiiiin!

Alda era séria, me olhava esquisito, meio de banda, até que um dia disparou:
_ “Eu sou comunista! Sabe por quê? Porque se aqui tivesse comunismo eu não estaria trabalhando e você brincando! Lá todo mundo é igual”!

Não entendi nada, bateu certa culpa, e ficaram muitas dúvidas. Se eu fosse comunista seríamos iguais, então… Estaríamos as duas trabalhando? Ou as duas brincando? Eu saberia encontrar os ramais? Nunca mais perguntei como ela conseguia passar as ligações.


Em um verão, 1966 ou 1967, Alda e Valda não trabalharam muito. No Rio de Janeiro, Petrópolis e outros municípios, enchentes, mortes, tragédias. Nenhuma mesa salvadora poderia resguardar famílias e crianças. O pavor estava no ar. O Pai CaRioca estava em São Paulo, a trabalho. Estradas fechadas, telefones mudos. Estávamos a salvo, mas o pai não poderia saber, em tempos sem celulares e internet.


A Mãe CaRioca deu a ordem: separar roupas, sapatos e brinquedos para levar a uma Rádio no Centro que pedia doações para quem havia perdido tudo menos a vida. No caminho comprou alguns cobertores e lençóis. O locutor dava informações sobre famílias petropolitanas que queriam mandar notícias para outras cidades. Uma ideia! A mãe fez um pedido e foi atendida. Não sei se o pai ouviu, mas o aviso foi ao ar: estávamos bem!


O tempo passou, e as tragédias que chegam com a chuva implacável continuam a se repetir invariavelmente.


Petrópolis, 2013
UOL



Espero que Alda e Valda estejam vivas e não tenham sido levadas pela água e pela lama que sistematicamente varrem Petrópolis. Se pudesse hoje diria a Alda que o que faltou não foi comunismo, mas, vontade política aos governantes de levar educação, segurança e saúde à população desassistida, dever de Estado que é promover o bem comum.


Gostaria que as famílias de Petrópolis – e tantas no Rio de Janeiro e outras cidades brasileiras – não morassem nas encostas que se desmancham à toa, no sopé dos morros que recebem as águas da natureza, ou nas faixas non-aedificandi dos rios que transbordam. E que o poder público impedisse essas ocupações. O discurso ‘não tenho para onde ir’ não pode ser mais forte do que a opção de viver sob risco; ou permitir morar em área de risco – o que fazem os gestores.



Catedral de São Pedro de Alcântara
Petrópolis, 2013 – Foto: UOL

Se de um lado estão a ignorância, a falta de estudo, a irresponsabilidade, e a eterna espera pelo paternalismo oficial, na outra ponta seguem há décadas ou séculos a negligência criminosa e a conivência dos administradores que fazem vista grossa para as ocupações irregulares e, com cara de choro, surgem após a desgraça, culpando seus antecessores até Estácio de Sá.



Nesses aspectos Rio, Petrópolis, Teresópolis, Friburgo, Xerém e tantos outros, são iguais: as moradias em áreas perigosas crescem, visível e assustadoramente, a cada ano, e as tragédias se repetem, diante da omissão generalizada.


Gostaria que na Semana Santa os que perderam entes queridos e amigos para as águas de março, pudessem encontrar consolo, generosidade, e o calor humano de amigos. Quem sabe, em volta de uma travessa de canjica quentinha polvilhada com canela?

Que a celebração no Domingo de Páscoa, data que representa renovação e esperança, ajude a confortar as famílias de Petrópolis, Xerém e Rio de Janeiro.


Catedral de São Pedro de Alcântara, Petrópolis
Skyscrapercity


Que todas as Aldas e Valdas estejam bem; que tenham constituído família; que seus herdeiros tenham estudado durante o ano letivo e brincado nas férias; que tenham  passeado de charrete e andado de pantufas pelo Museu Imperial; que tenham ficado deslumbrados com a coroa do Imperador! Que hoje, juntos, visitem a linda Catedral da Cidade Imperial, acompanhem a procissão do povo, dos religiosos, dos reis e ouçam as matracas.





E que, no domingo, as irmãs um dia jovens telefonistas possam contar aos netos, entre risos, como era complicada aquela mesa telefônica, hoje também peça de museu!


Boa Páscoa!


RESSURREIÇÃO DE CRISTO – RAFAEL, MESTRE DO RENASCIMENTO.
Imagem: internet

  1. Somos sobreviventes, sim, e tivemos muita sorte! Também gostaria que muitas coisas mudassem, no Rio, em Petrópolis, no Brasil… Faltam vergonha, seriedade, responsabilidade… Você falou certo: a culpa é sempre dos outros. Nossos gestores nem merecem tal título. Enquanto a instrução não se disseminar, continuará tudo igual ou pior.
    Vamos em frente! Para que as novas gerações tenham também boas lembranças! bj Andréa

  2. Querida ML, que bom termos tão boas lembranças e meus rabiscos terem feito algumas surgirem. Pena que não podia me alongar mais. Patrone, D'Angelo, as cachoeiras, o Katz na avenida, a cocada perfeita, as comprinhas na rua Teresa… E a família junta!
    Sorte termos tido tantas coisas boas e a chuva ter poupado a casinha, o Taquara, e as nossas vidas! bj

  3. Querida prima;
    Boa tarde.
    Espero que esteja bem e gozando saúde.

    Só você para colocar em prosa, linda, leve e direta, o romantismo de uma Petrópolis de outrora; e, a seu lado, catástrofes anunciadas há tanto, que há tanto se repetem.

    A falta de instrução, confrontada com a falta de vergonha, resulta em perdas de um lado e ganhos de outro.

    Pudera um Deus, ou Divindade que seja, efetivamente fazer valer uma Lei do Karma, que da qual tanto se ouve e poucos comprovam, sobre os ombros dos falsos que compram votos com olhares tristes a apontar terceiros… nunca eles…

    Se Deus é brasileiro, seu dedo na estrada da serra está. Apontando pro céu indica o caminho inexorável de toda alma, temente ou não, a contas prestar no devido momento.

    E nós, saudosos e frágeis aguardamos que a boa vontade entre os homens prevaleça e, a parte de um Governo populista e falso, ofereça caminhos dignos e calmos para estes que tanto, e por tanto, sofrem….

    De minha parte, agradeço a chance de ter conhecido, de perto, tudo que comentou em seu belíssimo texto e rogo que minha filha possa, um dia, ter o gosto destas experiências que a Mãe Carioca me proporcionou também.

    Obrigado, seu primo.

  4. Como sempre primadrinha seu texto lindo remete ao cenário real! Rico nos detalhes fazendo brotar uma lembrança maravilhosa e saudosa, deixando um largo sorriso em todos que conhecem os locais narrados e, fazendo crescer a imaginação dos que não conhecem. Parabéns! Feliz Páscoa!
    Patroooone!!! rs rs

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