IMÓVEIS OCIOSOS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, de Vinícius Monte Custódio

Uma breve análise da (in)constitucionalidade da utilização compulsória do solo urbano no Projeto de Lei municipal nº 1.396/2012

Depois de  IMÓVEIS VAZIOS E IPTU PROGRESSIVO NO TEMPO e, na última segunda-feira, o post MAIS IPTU, ALÉM DO PROGRESSIVO NO TEMPO. O tema foi objeto de artigos e reportagens no jornal O Globo, recentemente (De 4.400 construções identificadas no Centro do Rio, 600 estão ociosas, 16/07/2017) neles ligados ao uso da medida como indutora do uso de imóveis vazios, a chamada Utilização Compulsória, prevista em lei. Diante do possível e indesejável aumento do valor daquele tributo, surgiram debates nas redes sociais, inclusive sobre a eficácia, ou não, do IPTU Progressivo no Tempo.

No artigo reproduzido abaixo*, o advogado Vinícius Monte Custódio analisa o assunto do ponto de vista jurídico, e questiona aspectos presentes no Projeto de Lei nº 1396/2012, em tramitação na Câmara de Vereadores, que trata da regulamentação daquele instrumento. Boa leitura.

*Publicado originalmente no site Jusbrasil em 18/07/2017

Urbe CaRioca

Plano Diretor de 2011 – Macrozonas de Ocupação

 

Imóveis ociosos na Cidade do Rio de Janeiro

Uma breve análise da (in)constitucionalidade da utilização compulsória do solo urbano no Projeto de Lei municipal nº 1.396/2012

Vinicius Custódio

Em 31 de maio de 2012, o ex-prefeito Eduardo Paes, alegando que “[o] Município do Rio de Janeiro possui uma grande quantidade de imóveis desocupados ou subutilizados, mesmo em áreas bem servidas de infraestrutura”, enviou à Câmara Municipal o Projeto de Lei (PL) nº 1.396/2012, que institui, nos termos dos artigos  a  do Estatuto da Cidade – ECi (Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001), instrumentos para o cumprimento da função social da propriedade no Município do Rio de Janeiro e dá outras providências.

O ECi estabelece, no âmbito da competência da União para dispor sobre normas gerais de Direito Urbanístico, as diretrizes gerais da política urbana, densificando os arts. 182 e 183 da Constituição da República de 1988 – CRFB. Os instrumentos contidos nos arts.  a  do ECi, a que faz menção o projeto de lei municipal carioca, são: o parcelamento, edificação e utilização compulsórios (arts. 5º e 6º); o IPTU progressivo no tempo (art. 7º); e a desapropriação com pagamento em títulos (art. 8º). Trata-se de instrumentos jurídicos cujo amparo constitucional jaz no art. 182§ 4º, da CRFB, que os prevê como formas de sanção ao inadequado aproveitamento da propriedade do solo urbano, assim entendido o imóvel urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado. Por fim, caso o Poder Público municipal pretenda promover o adequado aproveitamento do solo urbano, a CRFB condiciona-o à edição de lei municipal específica para área incluída no plano diretor, lei essa que deve seguir as diretrizes da norma federal, no caso o ECi.

No entanto, diferentemente do art. 182§ 4º, da CRFB, cujo inc. I somente impõe as penas de parcelamento e edificação compulsórios, o art.  do ECi extrapolou o texto constitucional, admitindo que aquela lei municipal específica também poderá determinar a utilização compulsóriado solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado.[1] O art. 5º, § 2º, do ECi prescreve que “[o] proprietário será notificado pelo Poder Executivo municipal para o cumprimento da obrigação, devendo a notificação ser averbada no cartório de registro de imóveis.” Com base nisso, o PL nº 1.396/2012 está propondo que:

Art. 6º Os proprietários notificados deverão, no prazo máximo de um ano a partir do recebimento da notificação, tomar as seguintes providências:

I – dar regular utilização ao imóvel;

II – protocolar um dos seguintes pedidos:

  1. a) licença de parcelamento do solo;
  2. b) licença de construção de edificação;
  3. c) licença para reforma ou restauração de edificação.

Parágrafo único. Na hipótese do inciso I deste artigo, o proprietário deverá comunicar ao órgão municipal competente que deu início à regular utilização do imóvel, com a apresentação dos documentos comprobatórios de tal fato.

Se o sentido de solo urbano não edificado pode ser considerado autoevidente, já o significado de solo urbano subutilizado ou não utilizado pode trazer algumas dificuldades. Isso porque o art. 5º, § 1º, inc. I, do ECi conceitua imóvel subutilizado como aquele “cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no plano diretor ou em legislação dele decorrente”. Por sua vez, complementarmente, o art. 28, § 1º, do ECi define o coeficiente de aproveitamento como “a relação entre a área edificável e área do terreno”. Daí se constata que o sentido de subutilização nada tem a ver com o exercício da faculdade de uso (jus utendi) da propriedade do solo urbano, que também é uma faculdade de não uso, e sim com a edificação no terreno, portanto carecendo de operacionalidade a pena de utilização compulsória.

O alcance do termo “utilização” também deve compreender o de “parcelamento”, do contrário não existiria correspondência entre o inc. I e o § 4º do art. 182 da CRFB. Assim, “subutilizado” seria uma categoria mais abrangente, envolvendo tanto os casos de ausência de parcelamento ou de edificação (solo urbano não utilizado) quanto os de parcelamento ou de edificação em densidade excessivamente baixas. Contudo, a subutilização não se afere apenas em termos quantitativos, mas também em termos qualitativos, é dizer, uma indústria localizada numa zona residencial pode ser tão subutilizada quanto uma casa unifamiliar numa zona residencial multifamiliar. Para fins do adequado aproveitamento do solo urbano, o conceito de “utilização” não se relaciona com a ocupação — ou a falta dela — do imóvel, mas com seus aspectos físicos. Isso porque, em primeiro lugar, o art. 182§ 4º, inc. I, da CRFB determina a realização de obras: de parcelamento ou edificação compulsórios. Depois, porque os elementos avançados pelo art. 5º do ECi também remetem a essa mesma ideia: coeficiente de aproveitamento mínimo, prazo para protocolo do projeto, prazo para início das obras, empreendimento de grande porte e conclusão em etapas. Em última análise, uma fiscalização da ociosidade de imóveis edificados, além de esbarrar em dificuldades operacionais intransponíveis, seria inconciliável com os direitos fundamentais à inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. , inc. X, da CRFB).[2]

Some-se a isso que o art. 6º, parágrafo único, do PL nº 1.396/2012 não esclarece quais seriam os tais documentos comprobatórios da regular utilização do imóvel, remetendo o art. 14 do projeto de lei a regulamentação dessa matéria à Prefeitura Municipal. Para além da grave insegurança jurídica em cometer tal definição a ato administrativo, sem a vocação de estabilidade própria das leis, o direito de propriedade privada, inclusive a do solo urbano, tem relação direta com a liberdade, de modo que permite que os proprietários programem suas vidas com tranquilidade.

Assim, como compatibilizar a utilização compulsória do solo urbano nos termos preconizados no projeto de lei municipal com a liberdade de um proprietário, por exemplo, fechar seu imóvel por alguns anos para ir trabalhar noutro estado ou mesmo noutro país? E se essa oportunidade de emprego for inesperada e não encontrar inquilino disposto a alugar a coisa? E se, não querendo alugar o bem, crise econômica tampouco lhe permitir alcançar o valor de mercado em eventual alienação? Esse é apenas um dos muitos casos possíveis que atestam a injustiça de tal proposta.

Cumpre apontar, ainda, que o art. 4º do PL nº 1.396/2012 delimita como áreas de aplicação do parcelamento, edificação ou utilização compulsória as Macrozonas de Ocupação Incentivada e Controlada. Seu parágrafo único dispõe que “[e]xcepcionalmente, quando a edificação não atender às condições mínimas de segurança, estabilidade, integridade e habitabilidade, a utilização compulsória poderá ser exigida nas demais Macrozonas de Ocupação do Município do Rio de Janeiro”

Ocorre que essa disposição viola frontalmente o art. 71, § 1º, do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município do Rio de Janeiro (Lei Complementar nº 111, de 1º de fevereiro de 2011), que afirma expressamente que esses instrumentos da política urbana só serão aplicados na Macrozona de Ocupação Incentivada, a saber:

Art. 71. Lei específica de iniciativa do Poder Executivo poderá determinar o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsórios do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, fixando as condições e os prazos para implementação da referida obrigação, nos termos dos artigos  a  do Estatuto da Cidade.

  • 1º O disposto no caput se aplicará a imóveis localizados na Macrozona de Ocupação Incentivada conforme disposto nesta Lei Complementar.

A esse respeito, o Supremo Tribunal Federal – STF já firmou a tese de que “os municípios com mais de vinte mil habitantes e o Distrito Federal podem legislar sobre programas e projetos específicos de ordenamento do espaço urbano por meio de leis que sejam compatíveis com as diretrizes fixadas no plano diretor”.[3]

Alheios a essa decisão, um grupo de vereadores protocolou um substitutivo (Substitutivo nº 1) na Câmara Municipal, no dia 30 de junho de 2017, que, entre outras modificações, acresceu um parágrafo (§ 2º) ao art. 4º para permitir que planos de estruturação urbana (PEUs) possam “definir dentro de sua área de atuação outras regiões onde passarão a ser aplicados o parcelamento, a edificação e a utilização compulsórios”. Não temos dúvida de que, com base no julgado do STF, o § 2º é inconstitucional.

É pacífico tanto na doutrina quanto na jurisprudência que normas restritivas de direitos fundamentais devem ser interpretadas restritivamente. Portanto, está bem de ver que a pena de utilização compulsória, como mecanismo legal de combate aos imóveis ociosos não encontra respaldo na CRFB. Sem as correções apontadas acima, indubitavelmente o PL nº 1.396/2012 será desafiado nos tribunais e não encontrará resposta outra que a coima de inconstitucionalidade.

[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao Estatuto da Cidade, 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 103-105.

[2] PINTO, Victor Carvalho. Direito Urbanístico: plano diretor e direito de propriedade, 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 188-189; 191-192. No entanto, em sentido contrário, entendendo que a norma aplica-se aos imóveis abandonados e não habitados, cf. BARROS, Ana Maria Furbino Bretas; CARVALHO, Celso Santos; MONTANDON, Daniel Todtmann. O Estatuto da Cidade comentado (Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001). In: CARVALHO, Celso Santos; ROSSBACH, Anaclaudia (org.). Estatuto da Cidade: comentado. São Paulo: Ministério das Cidades: Aliança das Cidades, 2010, p. 98.

[3] RE n. 607.940/DF (Plenário). In: Diário da Justiça Eletrônico, 04 abr. 2016. Rel. Min. Teori Zavascki.

Vinícius Monte Custodio

Mestre em Ciências Jurídico-Políticas com menção em Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente pela Universidade de Coimbra. Advogado. Vice-Presidente da Comissão de Direito Urbanístico da OAB-RJ – Subseção Barra da Tijuca. Procurador da Comissão de Defesa, Assistência e Prerrogativas da OAB-RJ – Subseção Barra da Tijuca. Membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB-RJ – Subseção Barra da Tijuca.

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