Aqui ninguém vai falar mal do Rio, mas…, de Joaquim Ferreira dos Santos

A crônica que este blog gostaria de ter escrito.

Urbe CaRioca

Aqui ninguém vai falar mal do Rio, mas…

Tirem esses quiosques do caminho que eu quero passear com o meu amor

Por Joaquim Ferreira dos Santos –  O Globo

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Érica Martin / Agência O Dia

A piada da semana foi o banheiro que alguém construiu ao lado de quiosques no mirante do Leblon. A prefeitura só descobriu quando ele, já ereto, todo pimpão, perfilava enfezado ao lado do Dois Irmãos e da Pedra da Gávea nos postais com o skyline da cidade.

Botou-se abaixo o monstrengo sob o argumento de que era uma avacalhação com o cenário e, quando eu achei que iam aproveitar o ensejo para fazer o mesmo com os quiosques, eis que pararam o botabaixo. Boquiabri-me incrédulo. Quando vão perceber que a multidão de barracas e quiosques da orla cheira tão mal à paisagem quanto o indigitado banheiro?

Vem chegando o verão – e eu ia continuar o texto dizendo que não demora muito agora, todas de bundinha de fora. Lembrei a tempo que isso era poesia libertaria feminista na música da Marina em 1987, hoje pode dar problema. Reescrevo.

Vem chegando o verão e dá um calor no coração ver que ele estará mais atrás do que nunca de um muro enorme de quiosques quilométricos, de barracos e de barracas, estas últimas uniformizadas com novo e piorado padrão estético para 2026.

No Rio, o espaço público não é o que o nome está dizendo. É uma oportunidade para alguém se apropriar dele e, como mostra o escandaloso calçadão do Posto 6, se instalar comercialmente – alugar motos, armar cabine de massagem, organizar excursões para Angra, vender ingresso para escolinha de stand up paddle ou, numa cadeira profissional, novidade da semana passada, um barbeiro cortar o cabelo do turista ao estilo de funkeiro carioca.

Aqui neste fundo de jornal ninguém vai falar mal do Rio. A cidade tem poucas fábricas importantes, a Bolsa de Valores se mandou para São Paulo, as sedes dos grandes bancos também, mas danem-se todos com seus bolsos cheios. Ficou a cultura, o borogodó, o bolinho de feijoada da Kátia Barbosa e a visão de um conjunto de praias que a todo sofrimento compensava quando, no caminho para o trabalho, você enchia os olhos com elas. Era um patrimônio do cidadão, o dono de todos aqueles metros quadrados públicos de areia deslumbrante, a paga com juros e dividendos por viver neste purgatório da beleza e do caos. Foi mal. Perdeu, playboy.

Acho que já disse uma vez, mas Nelson Rodrigues me ensinou que o homem é a soma de suas obsessões, e lá vai de novo o espanto: cadê as praias que estavam aqui aos olhos de todos? Para continuar no Nelson Rodrigues, já ouço a voz do Palhares, o canalha que beijava a cunhada no pescoço, respondendo “o quiosque escondeu”.

Parece haver um desprezo ignorante ao valor da paisagem que nos cerca e dá identidade, e isso vem desde o cerco ao Morro da Viúva, ao afastamento do mar pelas pistas do Aterro, persistindo hoje com fatos sempre renovados. Semana passada esconderam a Lagoa com tapumes para resolver engarrafamento de trânsito. Poucos meses atrás, em frente ao Parque da Catacumba, onde antes havia um campo para o cidadão fazer piquenique à sombra das árvores, foi construído um estádio privado de quadras de beach tennis.

Aqui neste cantinho ninguém vai falar mal do Rio, mas, por favor, tirem esses trambolhos do caminho que eu quero passear com o meu amor.

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