Ir ao teatro na Cinelândia virou uma espécie de teste de bravura. Enquanto artistas e produtores culturais resistem heroicamente, oferecendo uma programação vibrante no coração histórico do Rio, o poder público abandona sua parte mais básica: garantir segurança a quem ousa atravessar a escuridão. À noite, o cenário é de filme distópico — com direito a estações de metrô fechadas, ruas desertas e um clima de medo que espanta a cultura e abraça o crime.
O artigo de Gustavo Pinheiro publicado em O Globo retrata o cenário presente. A decisão de investir em eventos culturais junto com o projeto Reviver Centro (sim, o que provocou novo boom imobiliário em Ipanema e Leblon) é bem-vinda. Sem segurança será inócua.
Fica o convite ao prefeito Eduardo Paes: que tal um passeio a pé pela Praça Floriano, um domingo à noite, após o último ato de uma peça? Talvez, assim, se compreenda que revitalização urbana começa com luz, presença e proteção — e não com promessas de lançamentos imobiliários que ignoram o presente sombrio. Enquanto o poder público some, a arte resiste. Mas até quando?
Urbe CaRioca
Centro do Rio à noite é para os fortes
Produtores culturais cariocas oferecem uma programação atraente e as plateias prestigiam. Falta o poder público oferecer o mínimo: segurança
Por Gustavo Pinheiro — O Globo

Fui ao teatro no Centro, domingo à noite. Das seis saídas do metrô Cinelândia, quatro estão permanentemente fechadas aos finais de semana. A alternativa foi a da Rua do Passeio, um lado mais agitado, com ambulantes e o vaivém do Teatro Riachuelo. Mas quando se vira para o outro lado da praça… o cenário é de série apocalíptica. Apenas zumbis cruzam a Cinelândia, pra lá e pra cá, esperando os incautos. Odeon fechado, Municipal fechado, Amarelinho fechado, escura, deserta, a praça é um convite para metade dos crimes listados no Código Penal.
A Avenida Rio Branco, que nos tempos de Getúlio Vargas era mão dupla e depois foi mão única, há algum tempo é mão nenhuma no trecho da Cinelândia. O resultado é uma rua erma desde que foi proibida ao trânsito de carros para a passagem do trem do VLT, sempre vazio. Costumava ir ao CCBB de metrô, saltava na Uruguaiana, descia a Rua da Alfândega até a Primeiro de Março. Fiz isso por anos. Atualmente, é preciso ter muito pouco amor à vida para se arriscar nesse trajeto. A pandemia jogou a última pá de cal no que já não ia bem das pernas. Durante o dia, o que mais se vê são lojas fechadas. À noite, moradores de rua.
No domingo, escondi o celular, respirei fundo, apertei o passo e cruzei a Cinelândia. Ao final da peça, uma roda de senhoras não conseguia disfarçar um certo pânico para sair dali. Formamos um grupo e fomos de manada até a boca do metrô, único lugar onde havia polícia, talvez por ser o ponto mais seguro. Sábios policiais.
Produzir teatro é para os fortes. Luta-se contra tudo, basicamente: a falta de estrutura, de patrocínio, de espaço para divulgação. Ainda ter que tourear com as deficiências da segurança pública é uma missão pesada demais. Para quem produz, mas também para quem senta na plateia.
Verdade seja dita: nos últimos anos, prefeitura e governo do Estado recuperaram equipamentos culturais importantes na cidade, como o Carlos Gomes, o Teatro Ipanema, o Ziembinski, o Domingos Oliveira, o Gláucio Gill, o João Caetano e o Municipal. É louvável, mas é preciso garantir a integridade física de quem os frequenta.
Os planos da prefeitura de revitalização do Centro, especialmente estimulando a moradia, só se tornarão viáveis se houver uma percepção mínima de vida de bairro, com teatros, cinemas, lojas e restaurantes. Não é o que acontece hoje. Esperar que isso seja trazido por lançamentos imobiliários é inverter a lógica. Ou as autoridades morariam na Almirante Barroso ou na Rua da Quitanda do jeito que estão?
O Centro é um dos principais polos de cultura do Rio e, ainda mais significativo para o teatro. É ali que estão o Sesi Centro, as salas do CCBB, o teatro dos Correios, a linda sala da Justiça Federal, o Glauce Rocha, o teatro da Caixa Cultural, o Nelson Rodrigues, o Carlos Gomes, o João Caetano, sem falar no Municipal. Um corredor teatral de fazer inveja a qualquer cidade. Os produtores culturais fazem a sua parte, oferecendo uma programação atraente. As plateias fazem a sua parte e prestigiam. Falta o poder público fazer a sua parte e oferecer o mínimo: segurança.