O geógrafo Hugo Costa, colaborador assíduo deste blog, é morador e estuda a Zona Norte em profundidade. É um dos entrevistados na reportagem de Selma Schmidt sobre a Região da Leopoldina publicada em 14/09/2025 no Jornal O Globo.
Assim como os governantes deviam usar o transporte público, morar durante algum tempo em áreas degradadas e abandonadas poderia reverter olhares e ações sobre essas. Ou melhor, levar a novos olhares e ações essenciais.
Urbe CaRioca
Chamada de ‘cidade-fantasma’, Zona da Leopoldina sofre esvaziamento por descaso e violência
Com 13 bairros, região perdeu 19% de sua população, enquanto Barra da Tijuca engordou 12% entre 2010 e 2022
Por Selma Schmidt – O Globo

O aposentado Vânio Korrêa, de 67 anos, chegou há quase cinco décadas a Ramos — um dos 13 bairros da chamada Zona da Leopoldina, cortados pela antiga linha férrea que lhe dá nome. Muito jovem, ele foi trabalhar como balconista numa padaria. Virou vendedor de lojas e fincou raízes por ali. Seguiu caminho inverso da região, que perdeu quase um quinto de sua população (19%) ou mais de sete mil pessoas entre 2010 e 2022, segundo os dois últimos censos do IBGE. Um percentual que contrasta com o da capital, que encolheu 1,72%, e o da Barra da Tijuca, que engordou quase 12% no mesmo período.
O esquecimento do poder público e o estímulo dado a viver na nova Zona Sudoeste explicam, na opinião de quem mora e estuda a região, a drástica redução de habitantes nos subúrbios da Leopoldina. E ainda o cenário de lojas e indústrias fechadas, de imóveis abandonados, além do crescimento da favelização e da violência. Uma “cidade fantasma”, diz o geólogo Hugo Costa. Mesmo ficando próximo ao Centro e cortado por trem e vias expressas como a Avenida Brasil e a Linha Amarela, o lugar engrenou a marcha a ré.
— Acompanhei o progresso e o “desprogresso” da nossa Leopoldina. A Leopoldina é minha inspiração, meu viver, minha vida. Aqui conheci minha senhora, aqui comecei a trabalhar. Ramos não me escolheu, eu escolhi Ramos — emociona-se Korrêa, que por 33 anos desfilou na bateria da Imperatriz Leopoldinense, oito como campeão, só deixando a passarela porque passou a ter que se dedicar à esposa que ficou doente.

Ciceroneado por Hugo Costa, um giro pela Leopoldina — inclui Manguinhos, Bonsucesso, Ramos, Olaria, Penha, Penha Circular, Brás de Pina, Vila da Penha, Vila Kosmos, Cordovil, Parada de Lucas, Vigário Geral e Jardim América — revela o esvaziamento do lugar. Segundo ele, a decadência do espaço começou a se intensificar há cerca de 40 anos.
— A Zona da Leopoldina passou de objeto de desejo da classe média à cidade fantasma, com inúmeros imóveis abandonados e fechados e queda de renda de seus moradores. Em 1986, Xuxa e Pelé foram garotos-propaganda de um prédio na Rua Leopoldina Rego, em Olaria, com salão, varandão, piscina, sauna e vista inigualável da Igreja da Penha — conta.
No passeio, o que se vê nada tem a ver com o brilho do passado e das estrelas douradas da bandeira da Imperatriz, que representam os principais bairros da região. Trechos de ruas importantes no passado — como a Uranos, que corta Olaria, Ramos e Bonsucesso — têm vários imóveis fechados e faixas de venda desgastadas pela demora em fazer negócio. Já na Praça das Nações, em Bonsucesso, uma das mais importantes da Leopoldina, não sobrou um mastro ou bandeira dos países aliados da Primeira Guerra Mundial. Marco local, a estátua “Crepúsculo” foi furtada em 2010.
Cinemas esquecidos
Prédios de cinemas famosos também são sinais da decadência. O no número 52 da Rua Leopoldina Rego, em Ramos, é de 1938, em estilo art-déco e tombado pelo município. Lá funcionou o Cine Rosário, depois transformado em Cine Ramos. Desativado desde 1992, o local já abrigou um bingo e uma boate. Hoje, é um edifício fechado, com paredes pichadas e parte do telhado lateral desabando, que está à venda por R$ 4,5 milhões.
Ainda em Ramos, com galeria comercial na frente, o antigo Rio Palace, na Rua Cardoso de Morais 400 — considerado o maior cinema da América Latina na época de sua inauguração, em 1962, com seus três mil lugares — está cercado de mato e com o telhado com vigas de sustentação expostas. Esse cinema importou coluna e vigas da França.


Na Rua Uranos, o antigo Cine Santa Helena, que virou Cine Olaria, com fachadas tombadas, também está abandonado: sem cobertura, tem uma montanha de entulho dentro dele.
Na região, estão os complexos da Penha e de Israel, onde ocorrem constantes confrontos e operações policiais. Nas proximidades, ficam as comunidades do Alemão e da Maré. No trecho da Avenida Brasil, o prédio abandonado da Borgauto — vendia peças e acessórios para automóveis —, invadido no início dos anos 2000, e o fechamento de lojas do McDonald’s e do Bob’s são mais exemplos da decadência do lugar.
— Fiz um diagnóstico com o ano fechado de 2024 e verifiquei que um carioca tinha seis vezes mais chances de ser assaltado em Bonsucesso do que em Copacabana — afirma Hugo Costa.
O geógrafo buscou ainda dados na plataforma da Secretaria municipal de Saúde, constatando que a Leopoldina é a região da cidade com mais internações pulmonares.
— Praticamente não temos praças e, para construir o BRT Transcarioca, acabaram com algumas delas. Nosso único parque, o Ary Barroso, corresponde à metade da Praça Nossa Senhora da Paz (Ipanema) — diz ele. — Estimularam o crescimento da Barra, apesar de a Zona da Leopoldina constar como área a ser incentivada nos últimos planos diretores da cidade, nos planos estratégicos e no Plano de Desenvolvimento Sustentável.
Para o arquiteto e urbanista Washington Fajardo, a Leopoldina é mais importante para o futuro do Rio do que a Barra:
— Ela tem trem, Avenida Brasil, Linha Amarela, e de lá se chega rápido ao aeroporto e à Barra. Tem Fiocruz, mercados de abastecimento, cultura e memória, centralidades e bons bairros. Mas, infelizmente, tem um espaço público malcuidado, com baixa manutenção, e que é pouco arborizado, embora seja o local mais quente da cidade. Isso resulta numa imagem dominante de degradação, que gera preconceito.
‘Famosa simpatia’
Fajardo lembra que a Leopoldina é o maior território contíguo do Rio, sem montanhas interrompendo, que conecta municípios vizinhos, além de ter grandes equipamentos e funções urbanas:
— É urgente resgatar a famosa simpatia da vida de bairro da Leopoldina. Mas como fazer isso se a rua não é mais agradável como já foi no passado?
Segundo o ex-secretário de Desenvolvimento Urbano do Rio, o esvaziamento da região ocorreu em função de fatores como a desindustrialização do Rio e do país, a perda de função logística da Avenida Brasil, que virou apenas uma via de entrada e saída, e da insegurança. Trata-se, porém, acrescenta ele, de um local concentrador de empregos e, por isso, definido como área prioritária nos dois últimos planos diretores, embora eles não apontem “como” ou “o que fazer”.
— O novo Plano Diretor incluiu uma iniciativa importante, ao estabelecer mais potencial de adensamento dos terrenos, especialmente junto aos corredores de transporte de alta capacidade: metrô e trem. Outra ação importante seria um programa coordenado e integrado de intervenções urbanas. Eu chamava isso, na minha época de secretário, de Projeto Brop (numa referência a Bonsucesso, Ramos, Olaria e Penha), uma grande região contínua que precisa muito de melhorias no espaço público, com soluções baseadas na natureza para combater ilhas de calor. O plano poderia ter avançado mais; o resultado final na Câmara Municipal foi um pouco tímido — acrescenta.
‘Aberto só para almoço’
Aderbal Ferreira Lima, morador de Vila Kosmos e gerente do Restaurante Varandão de Ramos, na Rua Uranos, precisou se adaptar à realidade.
— Antes, trocava de turno às 16h com o salão cheio. Agora, só tenho um turno. Passei a funcionar só para o almoço. Tinha cliente que se mudou, porque a área está muito maltratada — lamenta ele, que trabalha no Varandão há 20 anos. — A prefeitura fechou a sede da administração regional (quase em frente ao restaurante), há uns oito anos. Até concretou portas e janelas, mas vez por outra o imóvel é invadido.

O prédio do anúncio de Xuxa e Pelé ficou pronto, e foi ocupado. Contudo, moradores reclamam da falta de zelo com a Praça Marechal Maurício Cardoso, que fica nas redondezas: a cabine da PM foi arrancada, mas parte da base foi esquecida, e falta uma gangorra no playground e peças dos equipamentos para a terceira idade. Próximo ao edifício da propaganda há duas faixas de vende-se. Uma delas de um galpão onde funcionou a Toulon, com 700 metros quadrados. O corretor Wilson Nunes conta que tenta vender ou alugar o imóvel há cerca de cinco anos.
— Há propostas, mas oferecem pouco. A proprietária pede R$ 1,2 milhão para vender, mas só querem dar R$ 700 mil. Também não encontro quem alugue por R$ 8 mil.
Ao lado, a situação de um imóvel de dois mil metros quadrados é a mesma.
— Há seis meses, estou tentando vender por R$ 1,2 milhão ou alugar por R$ 12 mil, mas não acho quem queira pagar — lamenta o corretor Davi Cohen.
Por e-mail, a prefeitura garante que “dá especial atenção à região da Leopoldina, com ações e investimentos que fortalecem a infraestrutura e o desenvolvimento destas localidades”. Diz ainda que o programa Bairro Maravilha beneficiou Ramos e está sendo executado em Bonsucesso, Olaria e Penha, “beneficiando 82 ruas, com investimentos de aproximadamente R$ 112 milhões”. Acrescenta que a região conta com 100% de cobertura da Saúde da Família, três vilas olímpicas, 149 áreas verdes, entre praças, parques e jardins, além de equipamentos educacionais e culturais.