Inspirados em Elio Gaspari, jornalista em constante sintonia com o Além, Orlando de Barros e Andréa Redondo, cientes da preocupação de uma figura ilustre em relação ao Centro do Rio, entraram em contato com o Céu dos Poetas e sugeriram que o prestigioso autor se manifestasse.
Boa leitura.
Urbe CaRioca
Orlando de Barros e Andréa Redondo
Caro Duda,
Espero que esta missiva o encontre bem. Saiba que tratá-lo pelo apelido é carinho, jamais desrespeito. Pela minha idade comparada à sua – menino cuja carreira acompanho desde cedo, sinto-me à vontade para recordar como era conhecido durante seus primeiros passos na política. Era o despontar de um futuro promissor. Isso esclarecido, vamos ao ponto.
Batizar a praça localizada no Centro do Rio de Janeiro com meu nome depois que parti, foi um presente a este então nonagenário. Gostei da justa homenagem recebida, pois nunca fui tímido ou falso modesto. Tenho orgulho pelo que fiz e fui reconhecido. Fiquei feliz pela escolha. Fosse um viaduto, menos me agradaria. Lago e praça juntos evocam placidez.
Caso desconheça, sou advogado, tomei parte na política estudantil, combati o governo Vargas, e aderi então ao Partido Comunista, razão pela qual “fui em cana” algumas vezes. Continuei habitué da prisão durante a ditadura militar. Mais velho, mal suportava a violência do Estado. Tive os direitos cassados. Fui demitido da Rádio Nacional. Todavia, nunca deixei o “partidão” mesmo decepcionado com a URSS.
Mas, não foi pelas convicções políticas que recebi tal deferência dos cariocas. Sem ostentar, também fiquei conhecido por outros motivos. Pouco advoguei, pois logo comecei a escrever peças de teatro de revista e canções. Ao mesmo tempo, aproveitei as oportunidades que o advento do rádio abria aos talentos artísticos: criei roteiros de programas radiofônicos e radionovelas. Fui ator de rádio até o final dos anos 50 e passei à televisão. Atuei em um sem-número de telenovelas com performances memoráveis, diziam. Sou autor de livros. Sugiro ler “Na rolança do tempo”, memórias que podem ajudá-lo a compreender a minha cidade querida e melhor tratá-la.
Com prazer, posso dizer que fui astro da cultura popular tanto no teatro, rádio e tevê, quanto no cinema e nas canções. Nessas me destaquei com sucessos duradouros. Seriam futuros clássicos escritos com os melhores parceiros na chamada “Era de Ouro” da música popular brasileira. Caso não ligue meu nome aos feitos, deixe que eu o rememore de alguns: “Ai que saudades da Amélia” em parceria com Ataulfo Alves – a “mulher de verdade” retratou a esposa conformada, um tipo social hoje inaceitável; compus “Nada Além” com meu parceiro e amigo Custódio Mesquita; a marchinha carnavalesca “Aurora”, com Roberto Roberti, foi gravada pela amiga e agora vizinha, Carmen Miranda. Nas entrelinhas da Arte exaltei o amor ao Rio. Mereci nomear a praça.
Era muito jovem e talvez não saiba que o lugar no coração do Rio de Janeiro, ainda por receber o meu nome, tornou-se – e permanece – ponto de manifestações políticas após o fim do regime militar. Os protestos ruidosos e manifestações libertárias de todas as naturezas me deixavam feliz, pelas preferências políticas e porque via ali o espírito carioca a revelar um povo pulsante e imaginativo, sempre disposto a criticar o que lhe desagradava.
Colado ao que seria a minha praça – creio poder chamá-la assim – estende-se outra área livre. Estamos unidas em longo casamento físico e psicológico. Você usava fraldas quando se cavou ali um buraco gigantesco onde ficaria a base de um enorme edifício. Era a década de 1970, nos anos de chumbo. Nada se podia questionar. Para o Bem e para o Mal, a empresa foi à bancarrota e nos deixou um aleijão urbano. O Mal foi o buraco, abandonado, inundado, foco de doenças. O Bem veio através de um corajoso antecessor seu. O então prefeito aterrou a ferida e entregou o espaço, livre e urbanizado, ao povo. O encontro feliz completou Bodas de Rubi. Em carne e osso, vivi o processo de apropriação do lugar pelos cariocas – eu incluído, claro – no dia a dia fervilhante do Centro. A natureza e o verde se impuseram ao passar dos anos. Daqui do Céu dos Poetas continuei a ver o Rio a se enfeitar ao lado de onde estão meu nome e parte de minh’alma.

Com espanto, soube que você decretou a morte da minha cara-metade para lá plantar um espigão de 24 andares com 720 “studios”, eufemismo para os antigos “apertamentos JK” (janela e quitinete) que você ressuscitou. Esperava receber um projeto para integrar-me ao plano original da Esplanada do Castelo, formar um conjunto urbano com segmentos coloniais preciosos entre prédios modernos, alento diante do inexplicável desmonte do Morro histórico. A torre perniciosa dominará o espaço, matará a árvores, a liberdade, e a chance de prosseguir em direção a uma cidade harmoniosa. Um monolito a mais entre tantos vazios, nada reviverá como apregoado. É nada além, nada além de uma ilusão. Serão pedras atiradas para cima, atiradas em mim. Cairão como sombra perniciosa e veneno sobre o que ali a vida semeou e fez florescer.
Pergunto-me se os cariocas perderam o espírito crítico característico na “mui leal e heroica cidade de São Sebastião”, hoje submissa à especulação urbana gananciosa. Da minha praça, em espírito espero que alguém apareça a qualquer hora, suba em um caixote e proteste contra o descaso, a indiferença e as más decisões dos poderosos. E que você ouça.
Afetuosamente.
Mário Lago