Lágrimas Distópicas – uma CrôniCarioca de Francisco Fonseca

CrôniCaRioca

Um halo difuso em torno das lâmpadas acesas nos postes da Av. das Américas, que se repetia em volta do clarão da lua cheia, me levou aos cuidados de um oftalmologista. Feito um mapeamento de retina, e apoiado na opinião de um especialista em córnea, recebo o diagnóstico: lágrimas distópicas, em tradução livre, e pra usar uma palavra da moda.

Mais afeito a uma visão poética do mundo, sempre pensei nas lágrimas como mensageiras da alma, um contraponto aos sorrisos. Às vezes bem vindas, às vezes inconvenientes, mas sempre portadoras de sentimentos. Nunca tinha me ocupado delas nas suas funções fisiológicas.

Escassas no passado, de tanto ouvir dizer que homem não chora, apenas emoções mais fortes me levavam a verter umas poucas, finas, ralas, daquelas que a gente disfarça com as pontas dos dedos e finge que está resfriado. Agora maduro, não raro elas me escorrem grossas, copiosas, às vezes amazônicas. Um poema do Mário Quintana, um neotango do Piazzolla, ou mesmo um velho samba-canção do Herivelto, e logo elas se apresentam, desabridas, indisfarçáveis, incontroláveis, pra tornar públicos os meus sentimentos, que eu preferia guardar só pra mim. E continuam rolando soltas, denunciando minhas emoções, mas já não lubrificam como dantes, prejudicadas na sua composição química pelo passar dos anos. Ou seja, o defeito é delas, não dos meus sentimentos.

Tudo bem, nada que um colírio alemão de nome estranho não resolva. Com sua embalagem especial, que evita o contato com o ar até que seja lançado sobre a córnea, funciona como uma bengala líquida, que vou ter que usar pela vida afora. Quer dizer, quando eu começo a me acostumar com elas, me fazem essa desfeita. Mal ultrapassado o umbral da casa dos 70, tenho mais uma surpresa da maturidade. Pelo menos, agora eu tenho uma desculpa. Se me virem chorando, saibam que não é fraqueza, sentimentalismo exacerbado, coração mole. Afinal, não são lágrimas de verdade, digo eu em causa própria, é o colírio alemão que, exagerado, transborda pelos meus olhos.

Francisco Fonseca é arquiteto

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *