O mito do carioca cordial, de Hugo Costa

Neste artigo, o geógrafo Hugo Costa avalia a necessidade de se rever conceitos e de desmitificar mitos, a exemplo daqueles cujo sentimento se resume à ideia de que o problema da Cidade deve ser priorizado pelo pagamento individualizado do IPTU. “A Cidade deve ser maravilhosa pela avaliação dos seus cidadãos, já que estes sim a representam, não somente pelos que vivem na bolha criada dentro dela, mas por todos”, afirma.

Urbe CaRioca

O mito do carioca cordial

Hugo Costa

 

Assistimos consternados na útima semana um vídeo que mostra uma moradora de São Conrado açoitando outra pessoa e, em meio à discussão, afirmar que tinha mais direito a cidade do que ele pois paga IPTU para isto. Em meio a dantesca cena, além das claras observações neste que pode ser um conjunto de características icônicas dos cariocas como a resolução de todos os conflitos com base na violência e o famoso “você sabe com quem está falando”, o foco deste será do direito à cidade,

Precisamos primeiro desmistificar alguns fatos:

Sobre a receita da Cidade do Rio de Janeiro

O IPTU e o Carnaval sempre são tratados como carros chefes da arrecadação da cidade, mas vamos tratá-los separadamente e de forma bem direta e rápida.

Carnaval: apesar de todo o movimento que causa naquela pequena parcela do território carioca situado na parte sudeste do sítio urbano, todo a ação de uma parte do Centro do Rio, da Zona Sul e do Jardim Oceânico que sempre é divulgada em manchetes jornalísticas anualmente recorrentes como responsável por uma movimentação milionária no município, nunca se encontrou lastro nas contas públicas como arrecadação diferenciada nos meses de festa (fevereiro ou março, conforme o ano). Cito aqui a pesquisa do economista Mauro Osório que debruçado sobre as contas do município não encontrou equivalência da festa com a positividade pontual no saldo nas contas públicas.

IPTU: Apesar de relevante nas contas públicas, o ISS sempre mostrou maior receita bruta, principalmente advindo da construção civil, e que explica o estímulo a continuar surgindo prédios e unidades habitacionais ou comerciais para venda na cidade em um ritmo mais acelerado que o crescimento demográfico do município ou em contraponto ao ritmo de ampliação de verticalização ou horizontalização de moradias populares e comércios informais na cidade. Mesmo dentro do IPTU, em outro artigo já abordamos que seja em volume de moradias contribuintes, seja na composição do percentual do taxado sobre o patrimônio líquido ou em alguns casos (SIC) na falta de recorrência de pagamentos (sonegação do IPTU), áreas ditas nobres da cidade acabam tendo uma parcela menor na contribuição deste às contas públicas.

Desconstruído sobre a relevância territorial no sentido de arrecadação financeira, o que leva alguns cariocas a acreditarem que seus CEPs são especiais em relação a outros dentro do sítio urbano do Rio de Janeiro? É inegável a construção do mito da Cidade Maravilhosa em uma pequena parcela do Rio de Janeiro com base em muitas expulsões de pobres de uma determinada região para a realocação forçada em outras, com objetivo de montagem de cartões postais. Criou-se um imaginário de que há uma cidade dentro da cidade com fronteiras bem definidas geograficamente e socialmente, tendo até hoje adeptos desta prática que defendem que a Rocinha e o Vidigal sejam transferidos para Santa Cruz, por exemplo, mas nitidamente ignorando onde é Santa Cruz ou se este seria efetivamente o destino, já que o relevante é retirar as favelas de seu campo de visão e ignorar seu destino.

O sentimento de que o problema da cidade deve ser priorizado pelo pagamento individualizado do IPTU, derivado desta construção artificial insustentável de cidade se traduz em açoites ou em citações de colunas jornalísticas sobre o valor do mesmo, sempre com foco no bordão carioca tacanho do “tô pagando” sem identificar a sua pequena relevância no todo para o tratamento almejado como diferenciado.

A Cidade Maravilhosa inclusive é citada em um conceito errado: a CIDADE (coletivo de CIDADÃOS) não pode ser considerada maravilhosa pelo seu Sítio Geográfico (Praias e Montanhas) ou pela sua Arquitetura (Prédios e Praças), ou seus equipamentos culturais (Cinemas e Teatros), mesmo porque até para esses itens fizeram questão ao longo do histórico de construção da cidade de torná-los exclusivos para uma pequena parte do Rio de Janeiro, replantando apenas a Floresta da Tijuca permitindo que outras encostas fossem ocupadas, mantendo limpas apenas as praias oceânicas e permitindo as baías poluídas, assim como preservando apenas prédios históricos com fins culturais das faixas territoriais mais próximas a esta orla, permitindo que outros simplesmente desabassem.

A CIDADE deve ser maravilhosa pela avaliação dos seus CIDADÃOS, já que estes sim a representam, não somente pelos que vivem na bolha criada dentro dela, mas por todos. E nesta parte já ficou claro que não há nada de maravilhoso para a maior parte dos cidadãos que estão procurando sair dela.

Ao fim, vimos no vídeo que o açoite é uma representação da cidade dita maravilhosa na visão do Rio de Janeiro como um todo, onde a violência é o meio de expulsão, o IPTU é um argumento que deve ser ridicularizado e que há duas cidades representadas pelos dois cidadãos.

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