O público e o privado, de Eurípedes Alcântara

Na coluna do jornalista Eurípedes Alcântara, no O Globo, o destaque para a atuação, competência e efetividade dos órgãos e empresas públicas no País. “Essa interpretação particular de que o que é de todos não é de ninguém explica o descaso permanente com a coisa pública. Os órgãos e empresas públicas no Brasil foram quase sempre ralos sugadores de recursos sem a contrapartida do serviço prestado”, afirma.

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Urbe CaRioca

O público e o privado

Eurípedes Alcântara – O Globo – 11 de janeiro de 2020

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Saudade não tem tradução completa para outros idiomas, mas seria um despropósito acreditar que o sentimento descrito pela palavra seja exclusivo dos povos de língua portuguesa. “Accountability”, porém, é uma palavra do inglês sem versão exata para o português e cujo significado não é muito difundido em nossa cultura. “Accountability” é a situação em que alguém — empresa, instituição ou governo — se coloca de modo a estar sempre de prontidão para prestar contas de seus atos sem mais considerações ou condições. Coisa rara entre nós. Por essa razão, tendemos a não perceber as implicações do que seja público, no sentido de dinheiro ou patrimônio públicos. Confundimos público, qualidade daquilo que pertence a todos, com sem dono—ou pelo menos um dono de quem se possa exigir responsabilidade. Isso é ruinoso.

Essa interpretação particular de que o que é de todos não é de ninguém explica o descaso permanente com a coisa pública. Os órgãos e empresas públicas no Brasil foram quase sempre ralos sugadores de recursos sem a contrapartida do serviço prestado — e sempre prontos a denunciar abusos quando um governante mais consciencioso decide cobrar-lhes resultados ou coibir sua autonomia para autoconceder aumentos de salários e aumentar seus privilégios. Vamos ficar com um exemplo de quem deveria dar o exemplo, o Judiciário. Dados da Comissão Europeia para a Eficiência na Justiça (CEPEJ) cruzados com informações do Banco Mundial e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) do Brasil revelam um quadro incômodo. Com duzentos servidores da Justiça per capita, o Brasil tem um Judiciário quatro vezes maior do que o da Alemanha e oito vezes maior do que o do Reino Unido. Com que resultados? As mesmas fontes mostram que, enquanto no Brasil uma sentença de primeira instância leva 1.606 dias para sair, o veredicto leva um terço do tempo na Itália (564) dias, um quarto no Reino Unido (350 dias) e um décimo na Noruega (160 dias). O Judiciário é público, independente, mas não deveria ser sem dono.

Em época de IPOs (Ofertas Públicas Iniciais) é útil também repisar o conceito de público no caso de empresas que abrem seu capital. Quando uma empresa decide lançar ações na Bolsa e se tornar pública isso significa que ela passou a ter que prestar contas não mais apenas à sua meia dúzia de fundadores, mas a milhares de proprietários, seus acionistas. Vai se obrigar a entregar exaustivos relatórios trimestrais e obedecer a regras de conduta rígidas, com adesão a códigos de combate à corrupção e, em alguns mercados, de controle de emissão de poluentes e de governança saudável. Seria ingênuo acreditar que empresas abertas são imunes a fraudes. Mas é certo que os eventos de corrupção entre elas são menos frequentes, mais fáceis de detectar e, quando não envolvem dinheiro de pagadores de impostos, bem menos destruidores. Só essa razão já seria suficiente para a acelerar a privatização da imensa maioria de empresas estatais brasileiras.

Outro domínio em que impera o entendimento de público como algo sem dono é o espaço comum das grandes cidades. São raríssimos os parques públicos no Brasil tratados com o mesmo cuidado que as pessoas dispensam aos seus jardins particulares. A largura das calçadas poderia muito bem servir de Índice de Civilidade. Quanto mais largas e bem cuidadas, maior o grau de civilização. Desafia o entendimento, por exemplo, o porquê de as calçadas da Avenida Park, em Nova York, um dos metros quadrados mais caros do mundo, serem quatro a cinco vezes mais largas do que as de bairros de classe média de São Paulo ou do Rio de Janeiro. As melhores cidades para se viver no mundo são justamente aquelas em que o espaço público é até mais agradável, seguro e bem cuidado do que as áreas privadas. São aquelas cujas autoridades mais prontamente podem ser responsabilizadas quando permitem que áreas comuns sejam tratadas como terra de ninguém. São aquelas que visitamos e nos dão saudade quando voltamos ao Brasil.

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