As Águas de Março e o Mestre Zu, de Chico Fonseca    

O arquiteto e escritor Francisco Fonseca nos brinda mais uma vez com texto impecável. Em meio a lembranças e emoções, presta homenagens a dois importantes personagens da Cultura brasileira.

Urbe CaRioca

As Águas de Março e o Mestre Zu  

Por Chico Fonseca

Não havia sol nas bancas de revistas. Os reencontros e a chuva é que me enchiam de alegria e preguiça. Um aguaceiro havia desabado sobre a cidade durante toda a noite, mas o meu fusquinha branco tinha atravessado com valentia as poças d’água da Avenida Brasil e chegado inteiro à Faculdade de Arquitetura. Era março de 1973, início de mais um ano letivo. Entre confraternizações, abraços, conversas, planos, plantas, projetos, recebi de um amigo a informação de que o IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil) estava promovendo um curso de Comunicação Verbal, com especial enfoque para a arquitetura. Quem iria ministrar o curso era uma suposta professora de português, D. Zuenir. 

Desde sempre ligado nesses dois assuntos, arquitetura e escrita, nem sempre nessa ordem, logo fiquei interessado. Mas quem seria essa professora? Para minha surpresa, na primeira aula do curso, apresentou-se um simpático professor de meia idade, voz mansa e rala cabeleira, que se identificou como o jornalista e professor Zuenir Ventura, de quem eu nunca tinha ouvido falar. Poucos dias depois, fui informado por um colega de curso de que ele era muito conceituado, tanto é que teria sido escolhido, lá pelos idos de 1967, por um grupo de intelectuais e artistas, para redigir um manifesto que seria endereçado ao então futuro presidente do Brasil, o General Costa e Silva. 

Que fim levou esse manifesto, ninguém sabe. Mas o Zuenir acabou preso. Não só ele, como, logo depois, a esposa e o irmão, que andavam perambulando pelos quartéis tentando obter notícias sobre o seu paradeiro. Caramba!!! Aquele homem gentil tinha sido preso pela ditadura. E eu estava diante de uma celebridade e não sabia. Sempre admirei quem luta contra ditaduras, seja qual for o matiz ideológico.

Entre tantos ensinamentos, dos quais me lembro de muitos até hoje, comentei com o mestre Zu sobre uma música do Tom Jobim, lançada no ano anterior, que me encantava pela melodia e me instigava pela poesia: Águas de Março. E ficamos, depois da aula, dissecando aqueles versos enigmáticos, belos, mas, aparentemente, para mim, sem pé nem cabeça. Incomodava-me a falta de um enredo, de um fio condutor. Qual seria, afinal, a metáfora central daquela letra? Com gentileza e paciência de professor, ele me explicou que eram imagens poéticas esparsas. Que falava, de maneira filosófica, sobre a ambivalência da vida, com seus bons e maus momentos: É um mistério profundo, é um queira ou não queira. Mas a essência da música, só o próprio Tom poderia esclarecer.

O mistério profundo permaneceu até que, anos mais tarde, assistindo a uma entrevista do Tom concedida a um jovem, magrelo e cabeludo, de nome Roberto D’Ávila, percebi que essa curiosidade não era só minha. Tarik de Souza, presente na entrevista, perguntou ao compositor o que eu tanto gostaria de saber. Nada como uma explicação dada pelo próprio autor: a música tinha sido escrita num papel de pão, “desses pardos, de embrulhar bisnaga”. Segundo Tom, ele estava construindo uma casa no seu Sítio do Poço Fundo, região serrana do Rio, na época errada, em pleno verão. E início de obra não combina com as chuvas torrenciais da estação. Se ele não tivesse deixado a Faculdade de Arquitetura no final do primeiro ano, talvez não tivesse cometido esse erro. O resultado: é o carro enguiçado, é a lama, é a lama

Quando compôs essa música, Tom estava “na fossa”, como se dizia na época. Aos 45 anos, depois de experimentar o sucesso da Bossa Nova, de gravar com Frank Sinatra e ser reconhecido internacionalmente, ele vivia um momento de tristeza e reflexão. Bebia demais, tinha problemas de saúde. Achava que sua carreira de compositor havia acabado. A cultura brasileira passava por um momento difícil. Ele havia sido detido por ter assinado, junto com outros artistas, um manifesto (sempre os manifestos), contra a censura (sempre ela). É o fim do caminho, no rosto um desgosto, é um pouco sozinho.

Os tempos solares da bossa nova, os versos delicados e ingênuos, o amor, o sorriso e a flor, os dias de luz, festa do sol, o vento alegre que me traz esta canção, haviam dado lugar a nuvens torturadas, ao choro de Marias e Clarisses. Amigos presos, amigos sumindo assim, denunciava Gil, numa versão magistral da canção de Bob Marley: No, woman, no cry. Como não chorar? Turvo turvo a turva mão do sopro contra o muro escuro, foi como Ferreira Gullar iniciou o seu célebre “Poema Sujo”, poucos anos depois, escrito no sufoco louco do exílio em Buenos Aires.

Tom estava trabalhando duro no seu LP Matita Perê, que seria lançado no ano seguinte, tentando dar novo fôlego à sua carreira. Cansado, deprimido, buscou refúgio no seu sítio. Ansiava pelo corpo na cama, o fim da canseira. Foi no fundo do poço, um pouco sozinho, na beira do rio, com a chuva chovendo, num resto de mato, na luz da manhã, driblando a tristeza, que os versos foram chegando, como água que brota de um regato, uma fonte. Assim foi surgindo a inspiração para uma das mais belas e importantes canções de todos os tempos, juntando melodia, filosofia, arquitetura, elementos da natureza, materiais de construção. E bebendo um pouco na fonte de Olavo Bilac (Foi em março, ao findar das chuvas… quando a terra, em sede requeimada, bebera longamente as águas da estação, versos de “O Caçador de Esmeraldas”), com pitadas de Guimarães Rosa e algumas gotas de Drummond.

Nas palavras do próprio autor, a música é “muito simples, musicalmente muito singela”. E foi escrita “depressa”, como se ele estivesse anotando os vários itens de uma obra. Tudo muito trivial, corriqueiro: é pau, é pedra, é peroba do campo, é o nó da madeira. É o tijolo chegando na canção, assim como se chegassem na obra. Quase um romaneio, uma relação de material, diria um mestre de obras. Ou um arquiteto: é o projeto da casa, é a viga, é o vão, festa da cumeeira. Coisa de gênio, poeta maior, que transforma as irrelevâncias do dia a dia em obra prima.

Certas palavras parecem apenas servir ao ritmo e à rima: caingá candeia, é uma conta, é um conto, é um pingo pingando, é uma ponta, é um ponto.  Já o Matita Perê, também conhecido como Saci (olha aí o parentesco no Pererê), é uma ave agourenta, cujo assovio macabro costuma prenunciar desgraça. Diz uma lenda amazônica que ele é a encarnação de uma bruxa malvada, que vive pedindo fumo para o seu cachimbo. Assustadas, as pessoas, quando ouvem o seu canto, gritam: vem buscar amanhã. No dia seguinte, uma velha feia, com o vestido esfarrapado, fica rondando a casa em busca do fumo prometido. Se não lhe dão, alguma desgraça se abaterá sobre a família. O Matita Perê costuma por seus ovos nos ninhos dos outros pássaros, terceirizando a tarefa de chocá-los. Como seus filhotes nascem primeiro e crescem mais rápido, ficam bicando os ovinhos dos donos do ninho, para que fique só para eles o alimento trazido pelos pais hospedeiros. É a natureza, com seu lado predador. É uma ave no céu, é uma ave no chão.

Mas é a água a metáfora para a dualidade da vida, que às vezes flui mansa, como uma conversa ribeira, às vezes violenta, como um tombo da ribanceira. Uma enxurrada de imagens poéticas, com elementos da natureza sendo trazidos pelo fluxo das águas.

Como uma febre terçã (aquela, do impaludismo, que sempre volta no terceiro dia), a cada ano temos de volta as temidas águas de março fechando o verão. E irrigando e fertilizando a terra requeimada, trazendo uma promessa de vida no seu coração.

Neste ano, em junho, Mestre Zu completará 92 anos. Tomara que o Matita Perê passe longe da casa dele.

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