CrôniCaRioca: Por um Fio, de Francisco Fonseca

Nesta CrôniCarioca, o arquiteto Francisco Fonseca brinda, mais uma vez, este espaço e nos traz um texto poético que relata as agruras de um maranhense-carioca às voltas com as dificuldades de um grande amigo, nem por isso com menos graça. Ao contrário, sua escrita é plena de humor refinado. Boa leitura!

Urbe CaRioca

Por um Fio

Morreu assim, de repente.
E eu que achava que só se morria assim antigamente,
De mal súbito, do nada, sem motivo aparente.
Companheiro inseparável por anos a fio,
Era sempre o primeiro a quem eu mostrava os meus escritos.
Com sensibilidade silenciosa, sem crítica ou censura,
Guardava na memória tudo que eu escrevia,
Parecia respeitar e acolher meus sentimentos.
Só dava palpite na ortografia.
Sempre atento, solícito, prestativo,
Pra qualquer dúvida que surgisse
Me sugeria um aplicativo.

Logo cedo era ele quem me despertava,
Com a delicadeza de uma música suave.
Discreto, silencioso, quando muito, vibrava,
Como se comigo compartilhasse
A alegria pela chamada de algum amigo,
Ou uma boa notícia que chegasse.
Era ele quem cedo me mostrava o jornal
Pra que eu amanhecesse informado.
Me acompanhava nas caminhadas,
Me lembrava dos aniversários, das tarefas diárias.
Aonde quer que eu fosse, lá estava ele, do meu lado.
Sempre atento, antenado. Ligado.

Jamais saía de casa sem que ele fosse comigo.
Se alguma vez, apressado, me esquecesse do amigo,
Voltava do meio do caminho só para tê-lo ao meu lado.
Com tantos préstimos e qualidades
Apenas um defeito ele tinha:
Não podia ver uma tomada.
Com seus pinos empinados, como um cachorro no cio,
Logo se animava pra dar uma encaixada.
Mas eu bem que o compreendia.
Era dessa conjunção carnal que ele tirava sua energia.
E recarregava sua bateria.
Bastava um leve toque e ele logo me atendia.

De noite, dedicado, era ele quem me embalava o sono,
Com músicas que, muitas vezes, ele mesmo escolhia.
Até meu gosto musical ele conhecia.
Na hora do nosso repouso, quedava-se silencioso,
E dormia quieto, ali, ao meu lado.
Eu bem sabia da sua saúde precária,
Já havia feito um transplante de tela,
Que após um descuido e uma queda,
Lhe tinha deixado seqüela.
Pois numa manhã ensolarada,
Estranhei que ele não me tivesse acordado,
Estiquei a mão para o lado com a intenção de chamá-lo.

Mas ele, quieto que estava, quieto continuava,
Tranquilo, sereno, como se ainda dormisse,
Na paz de um sono de criança.
Levantei-me de um pulo, assustado,
Encostei o ouvido no seu dorso negro,
Tentando ouvir seu coração.
Com cuidado fiz-lhe um afago
À espera de alguma reação.
E ele nada. Nem sinal.
Mantinha-se inerte, preso por um fio à tomada.
Sacudi o meu companheiro, desesperado.
Premi todos os seus botões, deslizei meus dedos por sua tela fria.

E ele ali, imóvel, corpo rígido, gelado.
Irremediavelmente morto, pronto para ser sepultado.

Custou a cair a ficha, outrora tão usada por seus antepassados.
E eu na sua cabeceira, inconsolável,
Sem rumo. Desligado do mundo.
Pranteando o meu telemóvel inseparável.

Francisco Fonseca

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