O VELOTRÓL*
Sou o Velotról. Tenho pouco mais de quarenta anos, um indivíduo de meia-idade, pode-se dizer.
Sou forte, resistente. Valente, modéstia à parte. Na época em que nasci, os humanos nos fabricavam com carinho, mais cuidado, esmero. Meus contemporâneos e outros amigos éramos feitos para durar, atravessar gerações. Sabíamos que dificilmente ficaríamos abandonados quando nossos donos crescessem. E assim aconteceu comigo.
Mal liberado pelos meus donos originais – os que me fabricaram – fui adotado por duas meninas, irmãs de 2 e 4 anos. A mais velha logo aprendeu a lidar comigo. Brincava e pedalava por toda a casa. A menorzinha se divertia enquanto os pais a seguravam ao tempo em que me empurravam. Era engraçado. Eles riam e reclamavam de dor nas costas. A pequena gargalhava!
Mas, logo fiquei triste. As meninas não moravam naquela casa. Ficavam comigo só nas férias escolares, feriados e em alguns finais-de-semana. De segunda a sexta-feira eu me sentia sozinho sem ouvir os gritinhos animados que enchiam a casa de sons quando elas chegavam e começava a disputa para saber quem me abraçaria primeiro antes de me fazer rolar pela varanda. A algazarra era grande – eu também sou bastante barulhento, confesso. Lá para as tantas os pais, cansados de pedir por silêncio, nos colocavam de castigo. Elas em um canto e eu em outro, estacionado, calado, esperando o tempo passar e a bagunça recomeçar.
A tristeza semanal duraria pouco. Um dia a moça que cuidava da casa nos dias úteis trouxe junto os filhos pequenos. Quando me conheceram os olhinhos brilharam! Logo se encantaram por mim. Nos distraíamos mutuamente enquanto a mãe tratava das tarefas. Já me sentia menos só. Logo vieram vizinhos, priminhos, minha fama de amigo dos pequenos se espalhava. Eles cresciam e traziam novos irmãos para me conhecer.
As meninas, minhas donas, também cresceram rapidamente. Chegaram os primos menores, depois mais primos vieram. Quanta alegria! Todos me queriam, todos me prestigiavam. Eu continuava forte, saudável, pronto para receber mais crianças, feliz por ter um propósito na vida, me sentir útil e amado! O desejo dos meus criadores se cumpria. As meninas tiveram filhos, a crianças que me alegravam durante a semana também. A terceira geração já está a caminho!
Ao longo de quatro décadas sei que tenho alegrado muitos futuros adultos e, mais ainda, eles a mim. Neste mundo de sons, luzes, telas, máquinas e velocidade espetaculares criados pelo homem, pensei que seria descartado por não ter pilhas, baterias, não saber falar, ouvir nem responder, e nem ao menos andar sozinho. Ultrapassado? Obsoleto? Que nada! O barulho suas minhas rodas rodando pela força das pedaladas que os pequenos se esforçam para aprender e me fazer rolar, são desafios sedutores. Ou não seriam das melhores cenas de O Iluminado, de Kubrick, as do menininho pedalando velozmente com o meu primo distante que era ator Hollywoodiano?
Que os deuses humanos que me criaram continuem a empreender em nome das crianças felizes e da simplicidade. Afinal, felicidade e simplicidade são as melhores coisas da vida, não é mesmo?
Assinado: O Velotról
Petrópolis, dezembro/1983 a outubro/2022, por enquanto.