Dia das Crianças, 2022 – O Velotról

 

 

 

Crédito: Andréa A. G. Redondo, Petrópolis, 14/10/2022

O VELOTRÓL*

Sou o Velotról. Tenho pouco mais de quarenta anos, um indivíduo de meia-idade, pode-se dizer.

Sou forte, resistente. Valente, modéstia à parte. Na época em que nasci, os humanos nos fabricavam com carinho, mais cuidado, esmero. Meus contemporâneos e outros amigos éramos feitos para durar, atravessar gerações. Sabíamos que dificilmente ficaríamos abandonados quando nossos donos crescessem. E assim aconteceu comigo.

Mal liberado pelos meus donos originais – os que me fabricaram – fui adotado por duas meninas, irmãs de 2 e 4 anos. A mais velha logo aprendeu a lidar comigo. Brincava e pedalava por toda a casa. A menorzinha se divertia enquanto os pais a seguravam ao tempo em que me empurravam. Era engraçado. Eles riam e reclamavam de dor nas costas. A pequena gargalhava!

Mas, logo fiquei triste. As meninas não moravam naquela casa. Ficavam comigo só nas férias escolares, feriados e em alguns finais-de-semana. De segunda a sexta-feira eu me sentia sozinho sem ouvir os gritinhos animados que enchiam a casa de sons quando elas chegavam e começava a disputa para saber quem me abraçaria primeiro antes de me fazer rolar pela varanda. A algazarra era grande – eu também sou bastante barulhento, confesso. Lá para as tantas os pais, cansados de pedir por silêncio, nos colocavam de castigo. Elas em um canto e eu em outro, estacionado, calado, esperando o tempo passar e a bagunça recomeçar.

A tristeza semanal duraria pouco. Um dia a moça que cuidava da casa nos dias úteis trouxe junto os filhos pequenos. Quando me conheceram os olhinhos brilharam! Logo se encantaram por mim. Nos distraíamos mutuamente enquanto a mãe tratava das tarefas. Já me sentia menos só. Logo vieram vizinhos, priminhos, minha fama de amigo dos pequenos se espalhava. Eles cresciam e traziam novos irmãos para me conhecer.

As meninas, minhas donas, também cresceram rapidamente. Chegaram os primos menores, depois mais primos vieram. Quanta alegria! Todos me queriam, todos me prestigiavam. Eu continuava forte, saudável, pronto para receber mais crianças, feliz por ter um propósito na vida, me sentir útil e amado! O desejo dos meus criadores se cumpria. As meninas tiveram filhos, a crianças que me alegravam durante a semana também. A terceira geração já está a caminho!

Ao longo de quatro décadas sei que tenho alegrado muitos futuros adultos e, mais ainda, eles a mim. Neste mundo de sons, luzes, telas, máquinas e velocidade espetaculares criados pelo homem, pensei que seria descartado por não ter pilhas, baterias, não saber falar, ouvir nem responder, e nem ao menos andar sozinho. Ultrapassado? Obsoleto? Que nada! O barulho suas minhas rodas rodando pela força das pedaladas que os pequenos se esforçam para aprender e me fazer rolar, são desafios sedutores. Ou não seriam das melhores cenas de O Iluminado, de Kubrick, as do menininho pedalando velozmente com o meu primo distante que era ator Hollywoodiano?

Que os deuses humanos que me criaram continuem a empreender em nome das crianças felizes e da simplicidade. Afinal, felicidade e simplicidade são as melhores coisas da vida, não é mesmo?

Assinado: O Velotról

Petrópolis, dezembro/1983 a outubro/2022, por enquanto.

Um dos clássicos de Stanley Kubrick, O Iluminado é considerado um dos melhores filmes de todos os tempos (divulgação)

*Nota: Esta CrôniCaRioca é uma história feliz sobre crianças que tiveram momentos alegres brincando com o valente Velotról que está na foto. De início, o texto imaginado para celebrar ou registrar o Dia das Crianças, como de hábito neste blog, seria diferente. A ideia era fazer um relato escrito com indignação diante da notícia recente sobre a prisão de mulheres que exploravam crianças nas ruas do bairro do Leblon.

A indignação é dupla: primeiro pelo fato de que acompanho a atividade dessas mulheres há cerca de vinte anos, desde que moro no bairro, e, em segundo lugar porque durante todo esse tempo jamais vi qualquer ação do Poder Público a respeito. Vi crianças de colo e outras um pouco maiores sob sol e chuva, tanto nos verões de 40º quanto nos invernos cariocas com até menos de 15º. Vi adolescentes grávidas e as mesmas já sem barriga, com os pequenos no colo. Em uma ocasião escrevi mencionando a ausência das autoridades e do Conselho Tutelar.

Nos últimos anos juntaram-se adolescentes às muitas mulheres e adolescentes , em geral meninos de 15 a 17 anos, também pedintes ou vendedores das balas que pedem para os passantes comprarem. Invariavelmente, todos os dias no final da tarde, os grupos (que cedo se distribuem desde o Jardim de Alah até o final do Leblon) reúnem-se para retornar às suas casas, carregados de sacolas com mercadorias de toda a sorte que conseguem nas farmácias e mercados, compradas por pessoas ainda sensibilizadas.

Pedir não é crime. Comprar e doar dinheiro ou mercadorias também não é. Explorar crianças e adolescentes, é.

Uma das reportagens cita a providência tomada por uma parlamentar: “Presidente da Comissão dos Direitos da Criança e Adolescente da Câmara dos Vereadores do Rio, a vereadora Thais Ferreira (PSOL) acionou o Conselho Tutelar para obter informações acerca do destino das crianças recolhidas nas ruas de Ipanema e Leblon com as seis mulheres presas. A parlamentar quer saber sob a tutela de quem estão e se está sendo assegurada a integral garantia de seus direitos, como saúde e educação.”

Perguntamo-nos porque essa preocupação surge apenas depois de anos e anos de descaso de todas as autoridades; o porquê da ausência do conselho tutelar; da inoperância dos órgãos que têm poder de polícia; por que as famílias não cumprem o dever de colocar as crianças na escola, sabendo-se que o ensino fundamental no Rio de Janeiro foi universalizado há muitos anos.

Tal como a vereadora tardia, gostaríamos de saber onde estão as crianças e adolescentes que há dez dias não mais circulam pelo Leblon. E todos os demais menores explorados nos bairros da Zona Sul. Esperamos que os poderes públicos continuem a agir, e que os carioquinhas tenham oportunidades para alcançar uma vida digna. E, tomara, brinquem muito andando de Velotról fora do horário escolar.

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