Apesar do reconhecimento internacional e de ter sido declarado patrimônio cultural mundial há dois anos, o Cais do Valongo, no Porto do Rio, há sete anos, tem o seu acervo, com cerca de 1,3 milhão de peças encontradas no sítio arqueológico, encaixotado em um galpão na Gamboa, sem manutenção, ameaçado e exposto a mofos e inundações.
Vejam a denúncia sobre mais um lamentável exemplo do descaso com o nosso patrimônio nesta matéria do Jornal O Globo.
Urbe CaRioca
Sete anos após escavações, objetos achados no Cais do Valongo
estão em caixas e correm risco
Um patrimônio histórico, que ajuda a contar um pouco da chegada de africanos escravizados ao Brasil, pode estar ameaçado. Cerca de 1,3 milhão de peças encontradas no sítio arqueológico do Cais do Valongo durante as obras de revitalização da Zona Portuária estão ainda, sete anos depois das escavações, encaixotadas em um galpão na Gamboa. Sem qualquer tipo de manutenção, o acervo — que tem cachimbos, contas de colar, anéis de piaçava, além de pedras, pedaços de cerâmica e búzios de várias espécies — estaria em risco, segundo arqueólogos que têm acesso ao local. Já entrou água em parte das caixas e foi constatada a presença de mofo e ferrugem em alguns objetos. Após receber denúncia de especialistas, a Polícia Federal instaurou, em maio, um inquérito para apurar a possível deterioração da memória da escravidão no Rio.
O Ministério Público Federal e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) também tentam salvar o material e querem que pelo menos parte do acervo, hoje sob responsabilidade da prefeitura, seja levada para a universidade. A ideia é que pesquisadores tenham acesso a tudo que está empacotado.
— Esse material tem grande valor arqueológico e não faz sentido deixar tudo fechado. Desde 2012, ele está indisponível e a pesquisa não pode ficar paralisada aguardando uma solução definitiva — diz o procurador da República Sérgio Suiama, que luta, junto da professora Tânia Andrade Lima — uma das responsáveis por descobrir o sítio arqueológico do Cais do Valongo —, para que o material fique sob tutela da Uerj.
Licitação atrasada – As peças estão guardadas em caixas pretas, em ambiente sem refrigeração adequada ou qualquer tipo de manutenção. Por conta disso, a prefeitura já foi obrigada, no fim do governo Eduardo Paes, a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público Federal, em que se comprometia a conservar esse material e a construir o Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana (LAAU). Esse espaço possibilitaria a permanência dos objetos na região do Valongo para fins de pesquisa. Estava prevista também a abertura de uma área de exposição para o público. O prazo inicial para o cumprimento de todas as obrigações por parte do município se encerrava em março de 2018. No entanto, a licitação para a construção do LAAU sequer foi lançada. A previsão é que ela aconteça apenas em dezembro, um ano e nove meses após o prazo.
´A construção do laboratório e de um Centro de Interpretação da Herança Africana são exigências da Unesco, que declarou, em 2017, o Sítio Arqueológico Cais do Valongo Patrimônio Histórico da Humanidade. A ideia inicial era de que os dois espaços ficassem em frente ao cais, no galpão Docas Pedro II, hoje ocupado pela ONG Ação da Cidadania
O Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, órgão da prefeitura responsável pelo acervo, diz que o projeto do laboratório está em elaboração, em conjunto com o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) , e que não há definição sobre a eventual transferência do acervo da Gamboa para outro local.
Procurado, o Iphan afirmou ao GLOBO que vem acompanhando a situação das peças no galpão e que não foi constatada nenhuma irregularidade na última vistoria realizada pelo órgão. Eles não especificaram, no entanto, quando foi feita a inspeção. Garantiram apenas que uma nova fiscalização será feita em breve.
— Eu estou esperando as pessoas tomarem uma providência, e nada se resolve. Precisa de uma solução definitiva, que cumpra também os compromissos internacionais do Brasil. Não é um patrimônio qualquer, é um patrimônio da humanidade, mas não se alcançou até agora uma solução envolvendo a instalação do Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana — reclama o procurador Sérgio Suiama.
Local por onde chegaram 500 mil africanos foi redescoberto durante obras no Porto
O Cais do Valongo foi a porta de entrada no Brasil para mais de 500 mil africanos escravizados, a maioria de Angola e do Congo. Construído em 1811, o espaço pelo qual desembarcavam os cativos foi remodelado em 1843 para receber Teresa Cristina de Bourbon, noiva do então futuro imperador Dom Pedro II.
Aterrado pelo prefeito Pereira Passos durante a reforma urbanística que mudou a paisagem do Centro do Rio no início do século XX, o Cais do Valongo foi “redescoberto” durante as obras de revitalização da Zona Portuária e, em 2017, foi declarado Patrimônio Mundial da Unesco.
A entidade exigiu que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) apresente, em julho do ano que vem, um relatório sobre o andamento dos compromissos acertados para a preservação do local. Com o prazo curto, o poder público tem corrido para tentar entregar as obras necessárias.
A região está em obras desde fevereiro, quando teve início a primeira fase da revitalização. Enquanto a cerimônia que anunciava as intervenções acontecia, arqueólogos realizavam o trabalho de limpeza das ruínas. Essa etapa tem conclusão prevista para este mês.
Em setembro, foi iniciada a segunda fase da revitalização, estimada em R$ 2,1 milhões, que inclui a instalação de câmeras de segurança, iluminação cênica monumental e sinalização. O aporte financeiro é da empresa chinesa State Grid Brazil Holding. O diretor de Meio Ambiente do grupo, Anselmo Leal, defende as melhorias que serão feitas. Segundo ele, com a sinalização, desenhos contando a história do lugar e as luzes, o local será um museu a céu aberto.
Em novembro do ano passado, o espaço já havia recebido um aporte financeiro de US$ 500 mil (cerca de R$ 2 milhões) proveniente da Missão Diplomática dos Estados Unidos no Brasil, com financiamento do Fundo dos Embaixadores dos EUA para Preservação Cultural.
*Estagiária sob supervisão de Leila Youssef