MARINA DA GLÓRIA: ESTE PROJETO É IMPOSSÍVEL

O artigo abaixo foi publicado em 15/03/2013 no Portal Vitruvius de Arquitetura e Urbanismo. Hoje, daqui a pouco, acontecerá na Câmara de Vereadores a chamada Audiência Pública para apresentação do projeto. Na opinião deste blog, como já se sabe, não há  que debater. Mas, vamos aos Road-Show empresarial que tem o apoio da Prefeitura e o inexplicável de acordo do IPHAN (que não é mandatório, cabe lembrar). Em breve, notícias sobre a apresentação.

Boa leitura!

MARINA É LUGAR DE BARCO
Opinião publicada no Jornal O Globo
Foto: Andréa Redondo

Marina da Glória: este projeto é impossível
Andréa Albuquerque Garcia Redondo


Examinar um projeto arquitetônico com vistas ao licenciamento de obras é tarefa complexa. As dificuldades para quem projeta não são menores. As normas urbanas do Rio de Janeiro são vastas e intrincadas, a lista de itens a serem conferidos é infindável, de volumes e áreas máximas de construção a medidas de jardineiras. Por volta de 1980 o Diretor do antigo Departamento de Edificações – DED, órgão municipal responsável pelas licenças, conhecido por sua competência e objetividade, ensinava aos jovens arquitetos: “Quando examinar um projeto, cuidado para não deixar o elefante passar! Depois não adianta preocupar-se com as formigas”.
Mais uma vez a área do Parque do Flamengo onde funciona a Marina Pública do Rio de Janeiro, a Marina da Glória, é cobiçada pela iniciativa privada. O concessionário daquele equipamento urbano público municipal encarregado apenas de gerí-lo e prestar bons serviços, deseja construir ali um Centro de Convenções e um conjunto de lojas.
O Parque do Flamengo é uma área pública, bem cultural tombado em duas esferas governamentais: federal e municipal.
No tombamento feito pelo órgão federal de proteção do patrimônio histórico e cultural em 1965, o Iphan, há especificidades. Segundo informações já amplamente divulgadas, o objetivo daquele ato administrativo foi evitar descaracterizações futuras, afastar a ganância sobre área de inestimável valor imobiliário, e manter os critérios do plano urbanístico original de Affonso Reidy, que previu algumas construções, definiu atividades respectivas e alguns serviços, sempre com o caráter do uso público – monumentos, museus, restaurante, parques infantis e espaços descobertos para atividades esportivas, recreação e lazer.
Por isso, causou enorme espanto a informação dada pela imprensa de que justamente o Iphan, guardião do Parque, aprovara o projeto para construção de um complexo comercial particular no terreno da Marina, ainda segundo a imprensa, por não ferir a paisagem.
Quanto a respeitar a paisagem, é incrível que o principal tutor do bem tombado tenha se limitado a analisar este aspecto. Do ponto de vista urbanístico e legal há muito mais a ser visto: por exemplo, se as normas vigentes permitem instalar uma nova atividade no Parque do Flamengo fora do padrão das poucas e esparsas construções excepcionais estabelecidas nos idos de 1960 por Reidy, salpicadas entre os jardins de Lota Macedo Soares e Burle Marx, para atrair frequentadores ao parque, garantir sua animação, e manter sua função de ser um espaço absolutamente democrático.
Se o competente órgão federal considerar apenas dimensões, volumetria e inserção na paisagem, e ignorar a natureza do empreendimento – atividades econômicas particulares -, demonstrará que muitas outras construções poderão ser erguidas no Parque com usos, tipologias e atividades comerciais de toda a ordem; afinal, em espaço tão gigantesco e generoso será fácil encontrar soluções arquitetônicas que se encaixem na paisagem discretamente ao longo de seus 1.200.000m². Bons profissionais não faltarão! E, por isonomia, o que é permitido a um empresário perante o Poder Público, deve ser possível para qualquer cidadão!
Não, a exceção não é possível, sequer discutível, porque o terreno da Marina fica fora do tecido urbano edificável nos bairros cariocas, fora dos terrenos próprios para construir e investir: não pertence às áreas da cidade que são propriedade privada, que lei permite ocupar daquela forma e exercer atividades comerciais de grande porte.
A concessionária REX, empresa do segmento imobiliário do Grupo EBX foi “criada em 2008 para identificar oportunidades de negócios no segmento imobiliário (…), entrou em operação em 2011 com dois focos de atuação: desenvolvimento de projetos urbanísticos e investimentos em ativos imobiliários para renda” (1). É como se apresenta. Entrou em operação em 2011, ano em que o grupo obteve a concessão. De modo próprio, ou incentivada pelo poder público, está interessada no terreno e não na Marina, é evidente. Nem mesmo prevê local para os barcos que ficam em terra – o dique seco!
A afirmação da empresa que apresentaria o projeto tão logo aprovado confirmou-se. Após o sinal verde do Iphan, deu início ao processo de “road show” da sedução através da propaganda. Liberou o projeto para a imprensa que se encarregou de divulgá-lo para o público leitor e a audiência da televisão. Convidou a população para conhecer a maquete do projeto em manhã de domingo, no parque. Convidou representantes de  instituições, profissionais diversos, políticos -, os ditos ‘formadores de opinião’.
Que não se enganem. É doutrinação para que os olhares se dirijam às Formigas enquanto o Elefante caminha devagar e discretamente. É fazer aflorar a vaidade dos que detém o poder no momento, chamados a opinar, por conveniência.
Talvez o esforço adiantasse caso este projeto fosse possível. Não é.
Entendemos que não é necessário conhecer o projeto por um motivo simples: o terreno da Marina da Glória não pode receber uma construção dessa natureza. E só. A construção e o respectivo uso são ‘O Elefante’: inadequado, indevido, irregular mesmo que aprovado pelo Iphan e pelo Prefeito, mesmo tendo dimensões menores em relação ao projeto suspenso pelo empresário antes das eleições – que ele considerou um “devaneio”.
Depois de aprovado o Elefante, não adiantará cuidar dos insetos: dizer que a altura do paquiderme deve ser 10m, 15m ou 20m; se deverá ser verde ou azul; se os estacionamentos ficam melhor aqui ou acolá; se a fachada vai ser de vidro ou pintada…
Não há dúvidas de que o lugar almejado é um dos mais lindos do Rio de Janeiro. Qualquer empresário gostaria de obter a área e nela construir. O discurso da “revitalização” e de que é bom para o Rio não se sustenta. Será bom para quem ocupá-la. Para a cidade certamente é melhor investir em outro lugar: na Zona Portuária, por exemplo.
Neste aspecto, vale comentar que a responsabilidade pela concretização da desastrosa proposta não poderá ser imputada apenas ao empresário. Este construirá ‘O Elefante’ tão somente se a Prefeitura permitir, o que remete ao ponto essencial sobre o caso da Marina da Glória:o uso do solo, perante a lei.
O Parque do Flamengo é área pública non-aedificandi, bem de uso comum do povo, por isso não existem sequer índices urbanísticos aplicáveis além do plano original de volumes a serem erguidos e seus usos respectivos, conforme citado.
Portanto, a Prefeitura não poderá aprovar a construção de shopping e Centro de Convenções no local, mesmo com a inexplicável concordância do Iphan.
A negativa do órgão federal seria determinante. Por outro lado o “de acordo” do Iphan não significa necessariamente que a proposta tenha sido analisada sob todos os aspectos normativos. O “nada a opor” dá-se no âmbito das suas atribuições específicas, não é mandatório. E a competência para licenciar obras é do Município.
Mas, este é um projeto impossível, pois não existe discricionariedade fora da lei.
NOTA
1
Texto institucional do Grupo EBX. Disponível em <http://www.ebx.com.br/pt-br/Empresas/Paginas/rex.aspx>.
sobre a autora
Andréa Albuquerque Garcia Redondo, arquiteta, foi Subsecretária Municipal de Urbanismo (1993-1996) e Presidente do Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro (2001-2007). Atualmente é autora do blog Urbe Carioca.


Foto: Andréa Redondo

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