Nosso Patrimônio Cultural, de Roberto Anderson

Neste artigo, originalmente publicado no Diário do Rio , o arquiteto e urbanista Roberto  Anderson Magalhães analisa a questão do patrimônio cultural, a importância da preservação, do debate e da participação da sociedade.

“É necessário alimentar a mobilização da sociedade em defesa do seu Patrimônio, como a que se deu contra a demolição do Palácio Monroe ou a destemida ação de jovens que, subindo na fachada da Fundição Progresso, sustaram as picaretas que demoliam o edifício. O valor da memória é, hoje, mais difundido e há na sociedade uma demanda pela preservação daquilo que ela valoriza. O mundo do Patrimônio precisa ir ao encontro dessa demanda”, destaca.

Urbe CaRioca

 

Nosso Patrimônio Cultural

Roberto Anderson – Arquiteto e Urbanista

Artigo publicado originalmente no Diário do Rio

Foto: Roberto da Luz

Algumas semanas atrás, perdemos o arquiteto Ítalo Campofiorito, mestre de toda uma geração que se encantou com a proteção e a gestão do Patrimônio Cultural brasileiro. Foi um homem cordial, amante da conversa, que soube escutar e valorizar os jovens que o procuravam. Ítalo atuou nas três esferas administrativas: nacional, onde foi membro do Conselho Consultivo do IPHAN; estadual, tendo sido diretor do Inepac e membro do Conselho Estadual de Tombamento; e municipal, quando foi membro do Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio Cultural da Cidade do Rio de Janeiro e membro do Conselho Municipal de Tombamento de Niterói. Ítalo integrou também a Câmara Técnica do Corredor Cultural, órgão responsável pela definição das políticas desse projeto tão importante para nossa cidade.

O seu texto “Muda o Mundo do Patrimônio, notas para um balanço crítico[1]” teve um enorme impacto na formação de todos os que buscavam um caminho para além daquele traçado pelos pioneiros que construíram o antigo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN. Ali, vemos como a proteção do patrimônio brasileiro é o resultado de um longo processo, com a contribuição de distintos atores.

A começar pelas palestras ministradas no IHGB, nos idos de 1914, por Araújo Viana, Ricardo Severo e José Mariano. E também a viagem de Lúcio Costa a Minas no fim da década de 1920, o estudo de Mário de Andrade sobre o Patrimônio brasileiro e a decisiva atuação do Ministro Gustavo Capanema e de Rodrigo Melo Franco na criação, em 1937, do atual IPHAN. Nomes tão distantes da nulidade que o governo atual quer impor ao Instituto. Buscava-se então identificar o que seria esse Patrimônio no Brasil e o que preservar, no interesse da construção de uma moderna identidade nacional.

Naquela fase inicial foi dado maior relevo a obras excepcionais da arquitetura, contempladas com a inscrição no Livro das Belas Artes. No entanto, ao longo dos anos, por força da experiência acumulada e do diálogo com os questionamentos que se davam em outros países, ocorreu uma ampliação conceitual sobre o que deveria ser incluído na noção de Patrimônio. Foram abandonadas visões mais preconceituosas com relação ao ecletismo, se valorizou a arquitetura art déco, e já a boa arquitetura moderna se tornou Patrimônio.

Hoje vivenciamos a inclusão também da arquitetura e do maquinário industrial no conceito de Patrimônio, assim como dos bens imateriais.Uma alteração significativa foi a evolução em direção à noção de Patrimônio Cultural, que permitiu a incorporação de bens que não se enquadrariam nos tradicionais livros das Belas Artes. No Estado do Rio de Janeiro, na década de 1980, estando Ítalo à frente do Inepac, foram realizados tombamentos paradigmáticos, que marcaram essa ampliação conceitual, como os bondes de Santa Teresa e a Pedra do Sal. Foram tombados também a Casa da Flor, em São Pedro da Aldeia, e a obra do Bispo do Rosário.

Arquivo do Inepac

A sociedade se move nessa direção e cria suas próprias formas de valorização do Patrimônio. O Museu da Maré, por exemplo, é uma iniciativa local que promove a preservação de uma casa sobre palafitas e dos utensílios da moradia e do trabalho que anteriormente prevaleciam naquele bairro. Ali, a identidade local é valorizada, independente de outra que se queira impor. Reconhecer essas novas realidades e estabelecer o diálogo entre os diferentes polos da sociedade é um desafio que precisa ser enfrentado.

Sem esse diálogo, o Patrimônio oficialmente reconhecido corre o risco de se tornar desprovido de sentido para amplas parcelas da sociedade. A proteção ao Patrimônio Cultural é uma necessidade construída ao longo do tempo, e certamente serve de medida de civilidade. Há que se cuidar para que não se transforme em uma imposição burocrática, sem debate e participação da sociedade.

Foto: Roberto da Luz

É necessário alimentar a mobilização da sociedade em defesa do seu Patrimônio, como a que se deu contra a demolição do Palácio Monroe ou a destemida ação de jovens que, subindo na fachada da Fundição Progresso, sustaram as picaretas que demoliam o edifício. O valor da memória é, hoje, mais difundido e há na sociedade uma demanda pela preservação daquilo que ela valoriza. O mundo do Patrimônio precisa ir ao encontro dessa demanda.

A proteção e valorização do Patrimônio tem agora mais uma importante razão de ser: o fato de contribuir para o desenvolvimento sustentável. Enzo Scandurra[2] define que as cidades do desenvolvimento sustentável seriam aquelas que destinassem uma cota relevante de matéria e energia à sua manutenção e à sua organização interna e não ao seu crescimento. Assemelhar-se iam a um ecossistema maduro, como uma floresta, ao contrário de um bosque. Nessas cidades, seriam praticadas a reutilização, a recuperação, a renovação urbana, e a transformação no sentido tecnológico e qualitativo.

Seriam cidades em que a qualidade se contraporia à quantidade. Devemos caminhar para uma maior valorização da arquitetura preexistente e a atribuição de novos usos à mesma, como a conversão em habitação popular, por exemplo. Até aqui já foi longo o caminho percorrido. Ampliou-se e diversificou-se o acervo de bens protegidos. A experiência técnica acumulada é, em si, um importante patrimônio e os profissionais da área são de enorme dedicação. As áreas protegidas de nossas cidades tornaram-se pontos irradiadores de identidade. O capital cultural já é visto como capaz de agregar valor econômico.

Não só a produção cultural mais erudita é vista como Patrimônio, mas também diversas outras manifestações e realizações populares. Patrimônio e meio ambiente passaram a ser vistos de forma relacionada. As investidas de políticos mal intencionados e da especulação imobiliária trazem novos riscos e desafios, mas há razões para um moderado otimismo.O Rio de Janeiro teve sua paisagem cultural, a combinação única de ambiente edificado e natureza, reconhecida como Patrimônio Cultural da Humanidade.

Além de sua arquitetura que contem exemplares que perpassam os períodos da colônia, do império, da velha república e da modernidade, a cidade é também uma usina de criação de expressões culturais. Sabendo valorizar esse Patrimônio Cultural, teremos um belo ponto de partida para a construção do nosso desenvolvimento sustentável.

[1] CAMPOFIORITO, Ítalo. “Muda o Mundo do Patrimônio, notas para um balanço crítico”. In: RIO DE JANEIRO, Governo do Estado. Revista do Brasil, Ano 2 nº 4/85. Rio de Janeiro, 1985, PP. 32-43.

[2] SCANDURRA, Enzo. L’ambiente dell’uomo, Verso il progetto della città sostenibile. Milano: Estalibri, 1995, p. 198.

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