O coronavírus crônico na Câmara de Vereadores do Rio infecta a legislação urbanística: o caso da pseudo AIES de Rio das Pedras, de Sonia Rabello

Neste artigo, publicado originalmente no site “A Sociedade em Busca do seu Direito”, a professora e jurista Sonia Rabello destaca a “contaminação crônica, latente e permanente” que avança sobre  produção legislativa na Cidade do Rio.

Nesta 4ª-feira foi aprovado, em 1ª votação, um projeto que aparentemente seria para estabelecer uma Área Especial de Interesse Social. Mas o texto indica uma manobra para excetuar a legislação urbanística geral para alguns terrenos na região da Zona Oeste, sem cumprimento das regras do Plano Diretor.

Vale a leitura !

Urbe CaRioca

O coronavírus crônico na Câmara de Vereadores do Rio infecta a legislação urbanística: o caso da pseudo AIES de Rio das Pedras

Sonia Rabello

O coronavírus que contagia a produção legislativa é uma infecção crônica, latente e permanente, e que está matando, aos poucos, o que resta da Cidade. E, pela ignorância, pelos interesses ou pela ideologia, os vereadores votam conforme a orientação do Executivo (sua “base”), uma vez que a Administração troca pequenos favores em suas comunidades por votos nos projetos de seu interesse.

É a contaminação do toma lá dá cá no parlamento da cidade que acontece há décadas. É como os vereadores de base local se reelegem; usando os favores de obras e serviços que o Executivo faz em suas áreas de influência, a pedido deles. E aí os cidadãos cariocas se perguntam os motivos pelos quais a cidade vem se deteriorando tanto, sem conectar esta degradação às negociações de favores e pedidos que acontecem diuturnamente na Câmara de Vereadores da Cidade.

Prova disto aconteceu nesta quarta-feira, dia 11, quando foi aprovado, em primeira votação, um projeto estranhamente tortuoso; o projeto de lei 1418/2019.

Aparentemente, ele seria um projeto para apenas estabelecer uma AEIS (Área Especial de Interesse Social).  Mas o texto do projeto nos leva a crer que o uso deste instrumento é uma manobra para excetuar a legislação urbanística geral para alguns terrenos na região da Zona oeste, sem cumprimento das regras do Plano Diretor.

Vejamos:

1. O projeto de lei 1418/2019 altera uma área já grande da favela de Rio das Pedras, na Zona Oeste, declarada como área de interesse social há 21 anos – em 1999 – pelo Prefeito Conde (Lei 2818/1999). Embora tenha passado duas décadas, nada aconteceu em Rio das Pedras. Minto, aconteceu sim; cresceu exponencialmente sem que nestes anos, mesmo com o boom de recursos públicos para a Copa e para a Olimpíada, qualquer ação efetiva dos executivos eleitos neste período tenha se realizado para melhorar as condições habitacionais do local. Rio das Pedras, terceira maior favela do Rio é, segundo a mídia, um território dominado pela milícia. 

2. Agora, o projeto de lei 1418/2019 acresce à área original de 1999 mais cinco novas áreas (poligonais 2 a 6), sendo que, segundo o mapa abaixo anexado ao projeto, estas novas áreas não são necessariamente ocupadas pelas favelas, mas grandes lotes pertencentes a alguns proprietários privados.

(Clique sobre a imagem para ampliar)

3. E o que quer o projeto de lei especial ampliando a AEIS para estes terrenos? Quer mudar os índices urbanísticos da região para aplicá-los só para aquelas áreas ou lotes, sem que isso seja objeto de lei complementar (que requer quórum especial de votação), sem ouvir o Conselho de Políticas Urbanas (COMPUR), sem realização de audiências públicas no Executivo, sem participação da sociedade civil.

4. Para fazer esta manobra urbanística a demagogia vazia é usada. Diz-se que a área será para habitação social, pois o art. 205 do Plano Diretor do Rio, só permite que uma AIES seja criada quando “destinadas a famílias de renda igual ou inferior a seis salários mínimos (…)”. Ora, para que isto seja concretizado é incontornável que esta enorme área seja objeto de um amplo projeto urbanístico, mas que, nestas dimensões, poderá acarretar um grande gueto social. Aliás ter um plano, a ser submetido junto com o projeto de lei, é impositivo, segundo o art.207 do Plano Diretor que diz:  Art. 207. O Plano de Urbanização de cada AEIS deverá prever:

I – diretrizes, índices e parâmetros urbanísticos para o parcelamento, uso e ocupação do solo e instalação de infraestrutura urbana respeitadas as normas básicas da legislação de Habitação de Interesse Social e nas normas técnicas pertinentes;

II – diagnóstico que contenha no mínimo: análise físico-ambiental, análise urbanística e fundiária e caracterização socioeconômica da população residente;

III – os projetos e as intervenções urbanísticas necessárias à recuperação física, incluindo sistema de abastecimento de água e coleta de esgotos, drenagem de águas pluviais, coleta regular de resíduos sólidos, iluminação pública, adequação dos sistemas de circulação de veículos e pedestres, eliminação de situações de risco, estabilização de taludes e de margens de córregos, tratamento adequado das áreas verdes públicas, instalação de equipamentos sociais e os usos complementares ao habitacional, de acordo com as características locais;

IV – instrumentos aplicáveis para a regularização fundiária;

V – condições para o remembramento de lotes nas AEIS 1;

VI – forma de participação da população na implementação e gestão das intervenções previstas;

VII – forma de integração das ações dos diversos setores públicos que interferem na AEIS objeto do Plano;

VIII – fontes de recursos para a implementação das intervenções;

IX – adequação às disposições definidas neste Plano, no Plano Municipal de Habitação de Interesse Social e nos Planos Regionais;

X – atividades de geração de emprego e renda; XI – plano de ação social.

Cumpriram-se estas exigências do Plano Diretor? Claro que não! Não tem nem plano urbanístico. Apenas, mudança de gabarito e parâmetros urbanísticos para os terrenos privados incluídos nos polígonos 2,3,4,5, e 6 do projeto de lei!

O pior é que o discurso oficial do prefeito parece querer se aproveitar de uma certa ignorância geral (aí incluído uma suposta ignorância dos vereadores), quando este justifica por escrito, no ofício por ele enviado à Câmara de que a habitação social seria para beneficiar os servidores municipais e professores.

É faltar com a verdade publicamente, já que o alcaide deve saber, por instrução da sua própria Procuradoria, que salvo em terrenos municipais, nem ele, nem qualquer administrador público, pode discriminar entre a população de baixa renda (até seis salários mínimos) seja por classe, cor, categoria profissional ou funcional, sexo, para colocar prioridades na fila dos necessitados. É fazer muito pouca consideração no mínimo do conhecimento e da inteligência cidadã alheia…

 

(Clique sobre a imagem para ampliar)

E por falar em pouca informação da “base” de vereadores do prefeito na Câmara, que não está nem aí para o cumprimento da Lei do Plano Diretor da Cidade, vejam os vereadores (em verde) que votaram a favor desta enganação legislativa na cidade do coronavírus urbanístico crônico.

Comentários:

  1. Cara Sônia,
    Além desses fatores expostos com precisão por você, vale salientar um grande impacto que a região já irá sofrer pela presença de canteiros de obras do minha casa minha vida. O entorno de Rio das Pedras, é cercado por inúmeros condomínios residenciais unifamiliares legalizados, ou seja, de acordo com o zoneamento proposto da região. Esta grande intervenção proposta, ignora o EIV(estudo de impacto de vizinhança previsto no Plano Diretor), que exige, entre outras coisas, audiência pública e comunicação prévia com os moradores . Infelizmente, somente os moradores das comunidades são ouvidos. Pessoas que se estabeleceram na área, desde a implantação do Plano Piloto de Jacarepaguá, que não contemplou a habitação popular no escopo do projeto. O capitalismo selvagem, sempre ignora a classe mais humilde da sociedade. Sou arquiteta, moradora da área e vi ao longo dos anos a depreciação de meu imóvel pela incompetência da Prefeitura em cumprir as diretrizes estabelecidas em lei de uso e ocupação do solo. A falta de estrutura da região e a mobilidade urbana, não possuem relevância para os leigos que infelizmente detém o poder. Por este motivo, protocolei ano passado , uma denúncia no MP, pedindo ajuda para a área formal. Somos pagadores de impostos, não cometemos crimes ambientais, não desmatamos , não poluímos os recursos hídricos e não temos direito de nada.

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