O silêncio do som

Andréa Redondo

Crônica escrita no escopo da Oficina Literária Eduardo Affonso

“A música, essa linguagem sublime, opera como o incenso e o perfume — entra em nós, só Deus sabe que pedaço do nosso ser ela tocará”. (Em a diferença entre amar e gostar, Roberto DaMatta, Antropólogo – O Globo, 02/08/2023)

“Você pode ouvir a música?” Bohr pergunta a Oppenheimer em um ponto, referindo-se aos sons imaginados de partículas invisíveis realizando seus negócios. (Em Oppenheimer – filme, 2023)

O radicalismo dos homens de branco acendeu uma fogueira, nela reduziu instrumentos musicais a cinzas, substituiu o som de melodias criadas pelo homem por estalos de madeiras que se despedem, crepitação. Chamas dançam em direção ao céu. Notas caladas. Acordes tolhidos. Para aqueles intolerantes a música é imoral. Eliminá-la é condição para merecer o Reino Eterno. A notícia me desnorteia.

Diz-se que Deus fez o mundo em seis dias. No início da Criação, por certo sons romperam o Caos silencioso, continuaram a soar no movimento das águas, na brotação do verde, e alcançaram o ápice com o canto dos pássaros e as vozes dos animais. Pergunto-me quando o Criador terá criado a música que brotaria de variados instrumentos. Deduzo. Harmonia e ritmo nasceram com o Homem, o ser que Ele dotou de capacidade única para fabricar artefatos musicais, e deles extrair maravilhas com dedos, sopros e batidas.

Saio à rua em busca do som perdido, roubado. Quero-o belo, agradável aos ouvidos, despertador de sentidos como a voz macia da mãe que desperta o filho do sono. Mas, o barulho da cidade é implacável como o relógio mais estridente. Motores rugem, vendedores apregoam mercadorias, pedintes se lamentam. Pedem. Serras serram, martelos martelam, construções escondem o céu, Paraíso sonhado pelos amantes do fogo infernal.

Em meio ao caos urbano, a menina na esquina, cabelos longos, saia curta, postura perfeita, violino nas mãos. Toca. É visão insólita no cruzamento de carros, ônibus e passantes, imunes ao som que sai das cordas. Paro. Durante alguns instantes o barulho à volta desaparece, para logo retornar no ronco dos caminhões e no lamento dos miseráveis. Eles expõem mazelas, soam sons defuntos, entoam o próprio réquiem. Pedem com lamúrias. Ela oferece seu talento, a calçada é palco. Pede com música.

As notas do violino remetem à imagem das labaredas. Ouço de novo o estalar daqueles que, um dia, pelas mãos de seus donos, provocaram alegria, tristeza, enlevo, palmas, convidaram a dançar. De repente, percebo que o pedido da menina através da música me afeta mais do que a toada mendiga, queixumes tornando-se banais. Sinto vergonha. Fujo. Caminho até o mar.

Inverno, praia vazia, sento-me na areia gelada. Céu ao fundo, os azuis me respondem com delicadeza. Pequenas ondas silenciosas se quebram aos meus pés, acalmam a ressaca que me invade. Olho à frente, escondo a cidade. Durante alguns instantes o mar e sua música pertencem só a mim. Não podem ser silenciados. Nem queimados. Ao longe ecoa o violino da menina. Na minha cidade ruidosa, está seguro.

Andréa Redondo – Sou carioca, arquiteta, encantada por sons e palavras. No Serviço Público troquei as linhas desenhadas pelas linhas escritas. Adiante criei o blog Urbe CaRioca, onde misturo críticas e elogios ao Rio de Janeiro com toques de humor. Que novos desenhos, em crônicas, troquem o foco externo – a cidade – por aprendizado pessoal, e tragam experiências gratificantes a receber e a compartilhar.

Comentários:

  1. Andrea, impressionante sua imersão no silêncio ensurdecedor da cidade, o que só acontece porque você parou para sentir isto! Fez existir este estado de coisas… Me interesso em sugerir que você está pronta para um livro…
    Carmen Muraro

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