Neste artigo, publicado originalmente no site “A Sociedade em Busca do seu Direito”, a professora e jurista Sonia Rabello destaca o fato de a Cidade do Rio operar no varejo em seu planejamento urbano e, operando no varejo, resulta que não tem nenhum planejamento nem a curto, médio ou longo prazo.
“Em meio à pandemia, o atual governo impõe a discussão, a toque de caixa, de seu novo Plano Diretor, prometendo apresentá-lo aos vereadores em meados deste ano. Então, o que explica o atual governo enviar para Câmara Municipal um projeto de lei para o centro do Centro da Cidade, mudando não só as regras de ocupação naquela área, como também para cerca de 100 bairros, usando um instrumento esdrúxulo, previsto em seu plano vigente – que é o instrumento da Operação Interligada ?”, questiona.
Urbe CaRioca
Operação Interligada do “Reviver Centro” no Rio: jabuti não sobe em árvore
Sonia Rabello
A Cidade do Rio de Janeiro opera no varejo em seu planejamento urbano. E, operando no varejo, resulta que não tem nenhum planejamento nem a curto, nem a médio e, muito menos, a longo prazo.
Em meio à pandemia, o atual governo impõe a discussão, a toque de caixa, de seu novo Plano Diretor, prometendo apresentá-lo aos vereadores em meados deste ano de 2021. E este novo Plano Diretor inserirá, a princípio, novas regras de uso e ocupação do solo para toda a Cidade. É o que é, em tese, prometido…
Então, o que explica o atual governo enviar para Câmara Municipal um projeto de lei para o centro do Centro da Cidade, mudando não só as regras de ocupação naquela área, como também para cerca de 100 bairros, usando um instrumento esdrúxulo, previsto em seu plano vigente – que é o instrumento da Operação Interligada*?
As pouquíssimas operações urbanas ocorridas na Cidade nos últimos vinte anos (como a do Parque Dois Irmãos ou a do Campo de Golfe), se materializaram como transferências de índices construtivos. Não sendo usados em um terreno específico (por conta de preservação ambiental ou outro uso restritivo) estes índices construtivos foram transferidos para outro terreno em negociação com proprietários acordados. Por isso se chama de operação interligada: uma operação urbanística que interliga um terreno a outro, sendo que no primeiro há uma restrição especial de uso construtivo.
Nesta nova invencionice, a imaginação chega ao seu auge. Na nova proposta, não há transferência de índices construtivos não usados em uma área – no caso, no centro do Centro do Rio – a II RA (ver abaixo a descrição da área).
Preferência exclusiva – Na proposta, o proprietário de um imóvel no Centro que queira reformar o seu imóvel comercial naquela área (II RA) para uso residencial, ou construir um prédio residencial ou misto, poderá usar toda a área edificável daquele seu imóvel e, além disto, poderá comprar, junto à Prefeitura, índices construtivos de terrenos localizados nos bairros das áreas de planejamento 2 e 3 (AP 2 e AP 3), fora do Centro, em bairros privilegiados de Copacabana, Ipanema, Botafogo, Tijuca e mais 95 bairros (ver descritivo das AP 2 e AP 3 abaixo). Isto parece significar que o titular do imóvel no Centro não só não pagará nada pelos índices construtivos do que irá construir no Centro (pela Outorga Onerosa), como ganhará a preferência exclusiva na compra de índices construtivos de imóveis encravados, com novos índices construtivos, nos bairros privilegiados acima citados.
A proposta está encoberta por um denso manto de perplexidades e indagações sem respostas, até porque a maioria quase absoluta dos leitores da lei ou não entendem o que está ali obscuramente delineado, ou nem mesmo ousaram a decodificar como se passaria, no seu todo, a proposta da operação.
Vejamos alguns dos pontos mais obscuros e controversos do uso deste suposto instrumento urbanístico não amparado pela legislação nacional – a operação interligada.
Se este proprietário de imóvel no Centro não for proprietário de imóvel nas AP 2 ou na AP 3, estaria ele comprando índices edilícios sobre imóveis de terceiros?
Este privilégio seria apenas para os proprietários de imóveis no Centro que forem também proprietários de imóveis nos bairros privilegiados? Um oligopólio de compradores de índices construtivos para determinados imóveis fora do Centro?
Estaria a Prefeitura transformando índices construtivos da Cidade em títulos móveis, como os CEPACs (Certificados de Potencial Adicional Construtivo), sem que tivessem o controle requerido para estas operações da Comissão de Valores Mobiliários?
Com a reserva de compra de índices construtivos dos imóveis encravados nas AP2 ou AP3 a somente àqueles proprietários de imóveis no Centro, estaria a Prefeitura instituindo um oligopólio de potenciais compradores dos índices construtivos sobre imóveis de terceiros, localizados na AP2 ou AP3? Por que a liberação dos índices construtivos dos imóveis encravados não é feita por oferta pública, mas sem reserva de mercado?
Quantos e quem são os proprietários dos terrenos vacantes no Centro que poderão receber edificações residenciais e mistas – e qual a estimativa de metros quadrados – que poderá ser objeto de bônus de edificabilidade por ele serem comprados nas áreas da AP2 e AP3? Qual a disponibilidade de metros quadrados dos imóveis encravados na AP2 e AP3* e qual o valor estimado desses metros quadrados se postos no mercado aberto? Qual a estimativa de arrecadação pela venda dos metros quadrados aos proprietários do Centro que possuam posições mercadológica de comprá-los?
Se for instituído, pelo novo Plano Diretor da Cidade, índice básico 1 para Outorga Onerosa, e um sistema acoplado de Transferência de Direitos de Construir, como fica a situação dos proprietários dos imóveis encravados da AP2 e AP3: com índice básico geral? Seus índices ficam fora do que for estabelecido para o restante da cidade? Far-se-á exceção de todo o Centro para o novo plano que nem entrou em discussão? Não se aplicará o novo Plano ao Centro? Terá “direitos adquiridos” à expectativa gerada pela lei do Reviver?
Outorga Onerosa – O espantoso é que, passados 20 anos de vigência do Estatuto da Cidade, a Cidade do Rio é uma das poucas capitais brasileiras que não só extinguiu a Outorga Onerosa do Direito de Construir, prevista de forma pioneira no Plano Diretor de 1992, como não a previu – na extensão de toda Cidade – no Plano Diretor vigente de 2011, aprovado na anterior gestão do atual prefeito. E, além disso, não previu também no PD vigente a transferência do Direito de Construir.
Talvez pretenda tirar este atraso na proposta do novo Plano Diretor, já que estes instrumentos urbanísticos são aqueles essenciais ao planejamento urbano, conforme previsto na lei urbanística nacional – o Estatuto da Cidade. Assim sendo, se fizer o dever de casa, a dita Operação Interligada não se encaixa nem no conceito de Outorga Onerosa de Direito de Construir, nem no conceito de Transferência do Direito de Construir, nem se materializa como CEPACs.
É uma jabuti carioca – não revitaliza nada; é apenas mais um palpite urbanístico, bem a gosto da mesma forma velha de gerir o planejamento a varejo da cidade; um discurso encapado com um bom título, mas, como sempre, pouco estudado, pouco diagnosticado, muito pouco realmente planejado. Após alguns comerem a carne, ficaremos anos tentando, como sempre, ver o que faremos com os ossos urbanos. Mas, aí já será um outro governo…
Plano Diretor 2011: sobre Operação Interligada
Art. 97. Constitui operação interligada a alteração autorizada pelo Poder Público de determinados parâmetros urbanísticos mediante contrapartida dos interessados, nos limites e na forma definidos em Lei.
Parágrafo Único. A Lei que regulamenta a Operação Interligada deverá ter suas disposições adequadas aos instrumentos dispostos nesta Lei Complementar.
Art. 98. Para efeito de utilização das operações interligadas serão estabelecidas as contrapartidas dos interessados calculadas proporcionalmente à valorização acrescida ao empreendimento projetado pela alteração de parâmetros urbanísticos, sob a forma de:
I – recursos para o Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano;
II – obras de infraestrutura urbana;
III – terrenos e habitações destinados à população de baixa renda;
IV – recuperação do meio ambiente ou do patrimônio cultural.
§ 1º A realização de operação interligada dependerá, sempre, da previsão na legislação específica ou local de alteração de índices e parâmetros urbanísticos especificamente para este fim.
§ 2º Quando o objeto da operação interligada for bem tombado ou sujeito à qualquer forma de proteção ambiental ou cultural ou, ainda, estiver situado em Unidade de Conservação, Área de Especial Interesse Ambiental – AEIA, Área de Proteção do Ambiente Cultural – APAC ou Zona Residencial – ZR há mais de dez anos com atividade dedicada à saúde ou à educação ou Área de Entorno do Bem Tombado, ouvidos o Conselho Municipal de Meio Ambiente e o Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural, conforme o caso, os recursos obtidos serão obrigatoriamente aplicados em favor da conservação ambiental ou cultural.
Projeto de Lei Complementar 11/2021 Reviver Centro – Operação Interligada:
Art. 52. A construção de nova edificação residencial ou mista ou a reconversão de edificação existente para o uso residencial ou misto na área da II R.A., na forma estabelecida nas Seções I e II do Capítulo II desta Lei Complementar, dará ao proprietário o direito à utilização da Operação Interligada em imóveis localizados na Área de Planejamento – AP 2 e Área de Planejamento – AP 3, como disposto no art. 57 desta Lei Complementar.
§ 1º Para efeito desta Lei Complementar, a Operação Interligada se refere à alteração de gabarito, mediante pagamento de contrapartida ao Município, das edificações não afastadas das divisas localizadas nas áreas em que incide o art. 448 da Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro – LOMRJ.
§ 2º O direito à utilização da Operação Interligada será concedido por ocasião da licença de obra relativa à construção ou reconversão do imóvel na II R.A..
§ 3º A certidão de Habite-se ou de conclusão da obra de construção da edificação objeto de Operação Interligada nas AP´s 2 e 3, somente será concedida após a emissão da certidão de Habite-se ou de conclusão da obra da construção ou reconversão do imóvel na II R.A..
Art. 53. Será objeto de pagamento de contrapartida através da Operação Interligada, a área dos pavimentos das edificações não afastadas das divisas nas AP´s 2 e 3 a serem construídos além do estabelecido no art. 448 da LOMRJ e na Lei nº 1.654, de 09 de janeiro de 1991, respeitadas as seguintes condições:
I – gabarito das edificações;
a) AP.3: máximo de seis pavimentos, de qualquer natureza, em vinte e quatro metros de altura;
b) Bairros de Copacabana e Leme: obrigatoriamente os gabaritos e demais condições dos pavimentos e da volumetria da edificação estabelecidos nos Projetos de Alinhamento de Loteamentos – PAL´s 22.351 e 33.100 em suas respectivas áreas de abrangência;
c) Bairro de Ipanema:
1 – obrigatoriamente os gabaritos e demais condições dos pavimentos e da volumetria da edificação estabelecidos nos PAL´s 22.351 e 33.100 em suas respectivas áreas de abrangência;
2 – Rua Visconde de Pirajá: obrigatoriamente oito pavimentos, de qualquer natureza, em trinta metros de altura;
3 – demais logradouros: máximo de seis pavimentos, de qualquer natureza, em vinte e quatro metros de altura.
d) Bairros da Tijuca e Praça da Bandeira:
1 – Rua Haddock Lobo, Rua Conde de Bonfim, Rua São Francisco Xavier, Rua Uruguai, Rua Barão de Mesquita e Avenida Maracanã: máximo de oito pavimentos, de qualquer natureza, em trinta metros de altura;
2 – demais logradouros: máximo de seis pavimentos, de qualquer natureza, em vinte e quatro metros de altura.
II – A Área Total Edificável – ATE será calculada da seguinte forma:
a) ATE = n° de pavimentos x área de projeção horizontal, nos lotes situados em quadras em que incide limite de profundidade de construção;
b) ATE = nº de pavimentos x 0,7 x área do lote, nas demais situações onde não há determinação de limite de profundidade de construção.
III – a ATE projetada nos pavimentos objeto de contrapartida deverá corresponder a no máximo:
a) quarenta por cento da ATE referente a unidades residenciais produzidas na II R.A.;
b) sessenta por cento da ATE referente a unidades residenciais produzidas na II R.A, caso a edificação tenha no mínimo vinte por cento dessas unidades destinadas ao Programa de Locação Social.
§ 1º Os gabaritos estabelecidos nos PAL´s 22.351 e 33.100 são de qualquer natureza, independentemente do uso da edificação, não podendo ser acrescidos pavimentos não computáveis.
§ 2º As alturas máximas definidas no inciso I deste artigo englobam todos os elementos construtivos da edificação.
§ 3º Como forma de recompor morfologicamente as quadras, seguindo as volumetrias e os padrões de ocupação que as consolidaram, nos locais relacionados na alínea “b” e nos itens 1 e 2 da alínea “c”, todos do inciso I deste artigo, as edificações objeto de Operação Interligada não poderão ter gabarito inferior ao estabelecido nesta Lei Complementar.
§ 4º Nos lotes situados em quadras em que incide limite de profundidade de construção, não haverá exigência do cumprimento da área livre mínima ou taxa de ocupação, desde que respeitadas as demais condições de ocupação estabelecidas nesta Lei Complementar e na legislação em vigor.
§ 5º No caso de retrofit, será objeto de pagamento de contrapartida a área correspondente aos pavimentos acrescidos à edificação existente não afastada das divisas, regularmente construída e licenciada, observados os incisos I, II e III deste artigo.
§ 6º Para a aplicação do disposto na alínea “b” do inciso III deste artigo, as unidades residenciais deverão fazer parte do Programa de Locação Social por no mínimo trinta anos.
§ 7º A área a que se refere o disposto no inciso III deste artigo poderá ser utilizada em mais de uma edificação que se enquadre nas condições estabelecidas no caput e nos incisos I e II deste artigo.
§ 8º O gabarito da edificação objeto da Operação Interligada, como estabelecido no inciso I deste artigo, não poderá exceder ao máximo estabelecido para o local para as edificações afastadas das divisas.
§ 9º Quando o limite da altura da edificação definido no art. 448 da LOMRJ seccionar um pavimento, este será inteiramente considerado objeto da Operação Interligada e computado para efeito da cobrança de contrapartida.
§ 10. O disposto neste artigo não se aplica:
I – a imóveis localizados acima da cota cinquenta metros;
II – aos logradouros com largura igual ou inferior a nove metros.
§ 11. O licenciamento de edificações integrantes de Áreas de Entorno de Bem Tombado, de Proteção do Ambiente Cultural ou Ambiental estão condicionados à análise dos órgãos de tutela.
§ 12. Os parâmetros edilícios não alterados por este artigo deverão obedecer ao disposto na legislação em vigor.
Art. 54. A contrapartida a ser paga ao Município pela aplicação da Operação Interligada será calculada pelas fórmulas:
I – para imóveis residenciais C = 0,8 ATE- OI x Vap/m² x TR; e,
II – para imóveis comerciais C = 0,8 ATE-OI x Vsc/m² x T, onde:
a) C = Contrapartida a ser paga ao Município;
b) ATE-OI = Área Total Edificável projetada, em metros quadrados, localizada nos pavimentos objeto de contrapartida através da Operação Interligada;
c) Vap = Valor unitário padrão Apartamento;
d) Vsc = Valor unitário padrão Sala Comercial;
e) TR = Fator Tipologia Residencial;
f) T = Fator Tipologia Não Residencial;
§ 1º Os valores e fatores relacionados nas alíneas “c” a “f” do inciso II deste artigo se referem àqueles dispostos na Guia de ITPU do Município do ano corrente.
§ 2º A contrapartida financeira definida no caput deste artigo será paga ao Município por ocasião da emissão da licença de obra das edificações nas AP´s 2 e 3.
A II Região Administrativa, objeto do Projeto de lei Reviver, é apenas parte da AP 1 (CENTRO GRANDE), e exclui as demais áreas centrais a seguir mencionadas: Área portuária, Saúde, Gamboa, Santo Cristo, Caju, Rio Comprido, Catumbi, Rio Comprido, Cidade Nova, Estácio, São Cristóvão, Mangueira, Benfica, Vasco da Gama, Ilha de Paquetá, Santa Teresa. (ver em link p.172)
Áreas de Planejamento 2 e 3 – bairros incluídos pelo Plano Diretor 2011
AP 2 inclui os seguintes bairros:
Botafogo, Flamengo, Glória, Laranjeiras, Catete, Cosme Velho, Botafogo, Humaitá, Urca, Leme, Copacabana, Ipanema, Leblon, Lagoa, Jardim Botânico, Gávea, Vidigal, São Conrado, Rocinha, Tijuca, Praça da Bandeira, Alto da Boa Vista, Vila Isabel, Maracanã, Andaraí, Grajaú.
ÁREA DE PLANEJAMENTO 3 inclui:
Ramos, Manguinhos, Bonsucesso, Olaria, Complexo da Maré, Méier, Jacaré, São Francisco Xavier, Rocha, Riachuelo, Sampaio, Engenho Novo, Lins de Vasconcelos, Todos os Santos, Cachambi, Engenho de Dentro, Água Santa, Encantado, Piedade, Abolição, Pilares, Jacarezinho, Madureira, Irajá, Vila Cosmos, Vicente de Carvalho, Vila da Penha, Vista Alegre, Irajá, Colégio, Campinho, Quintino Bocaiúva, Cavalcanti, Engenheiro Leal, 174, Cascadura, Vaz Lobo, Turiaçú, Rocha Miranda, Honório Gurgel, Oswaldo Cruz, Bento Ribeiro, Marechal Hermes, Inhaúma, Higienópolis, Maria da Graça, Del Castilho, Inhaúma, Engenho da Rainha, Tomás Coelho, Complexo do Alemão, Penha, Penha Circular, Brás de Pina, Vigário Geral, Cordovil, Parada de Lucas, Jardim América, Pavuna, Anchieta, Guadalupe, Parque Anchieta, Ricardo de Albuquerque, Pavuna, Coelho Neto, Acari, Barros Filho, Costa Barros, Parque Colúmbia, Ilha do Governador.