No último dia 3 de junho, o jornalista Fernando Gabeira publicou o artigo “Não vendam nossas praias”, no O Globo, a respeito do Projeto de Emenda Complementar que retira da União a propriedade exclusiva de uma faixa de terra chamada “terrenos de marinha”, uma área de 33 metros na margem do mar, rios, lagos e contorno das ilhas, refletindo-se em uma possível “privatização” ou flexibilização da proteção ambiental dessas áreas.
Nesta terça-feira, o escritor Leo Avessa apresentou uma uma crônica com requintes de ironia, mas que retratam os absurdos da proposta que parlamentares tentam votar sobre os espaços de lazer essenciais para os brasileiros, reproduzida abaixo.
Urbe CaRioca
Praia grátis é coisa de comunista
Quer ir no 0800? Vai pra Havana ou Varadero. E mais: deveriam dividir a praia em setores: pista, premium, camarote, vip etc. Quer apenas ficar na areia? Dez reais. Perto do mar? Vinte!
Por Leo Aversa — O Globo
Não sei se o leitor acompanhou a treta entre o Neymar e a Luana Piovani, o hit da semana passada. Me pareceu que a Luana tinha razão e com isso digo tudo. Se houve algo de bom no debate, foi jogar no ventilador o tal projeto de privatização das praias, a PEC que transfere terrenos de marinha para estados, municípios e proprietários privados. Quem está na relatoria dessa proposta marota é o insuspeito Flávio Bolsonaro, um político que dispensa apresentações.
Não, ainda não estão vendendo as praias, mas sim os terrenos que estão logo atrás delas. Ufa, dirão aliviados os otimistas, que não sabem que o diabo mora nos detalhes. De acordo com a PEC, uma pessoa poderia comprar um latifúndio à beira-mar e fazer com ele o que der na telha. Um resort gigante, por exemplo. A praia em frente continuaria pública, o único probleminha seria como as pessoas comuns, não hóspedes, chegariam até a areia. Apenas um detalhe, não?
Os ambientalistas estão apavorados, consideram que muitos ecossistemas no litoral estão em risco. Que bobagem, né? Esse pessoal se estressa à toa. O que acaba de acontecer em Porto Alegre é uma prova de que eles não sabem de nada e que a proteção ao meio ambiente é perda de tempo. Vamos deixar correr solto que vai dar suuuper certo.
Digo mais: acho que o Congresso deveria privatizar o litoral todo de uma vez. Chega dessa moleza de querer aproveitar a areia e o mar de graça. O carioca, por exemplo, folgado pela própria natureza, quer ir em Copacabana, Ipanema ou na Barra grátis. Essa bagunça tem que acabar!
Tem que cercar a praia, pôr umas roletas e pronto: só pagando. Quer ir no 0800? Vai pra Havana ou Varadero, seu comunista! Mais: deveriam dividir a praia privatizada em setores, como nos megashows: pista, pista premium, camarote, cercadinho vip etc. O cara quer apenas ficar na areia? Dez reais. Perto do mar? Vinte. Na beirinha, com direito a entrar na água? Cinquenta. Praia com direito ao mar, sem altinha ou frescobol atrapalhando? Setor VIP, por apenas R$ 100 a hora, com refil de mate e bufê de biscoito Globo. E os “naming rights”? Por que Praia de Ipanema pode ser “Samsung Beach”?
Anota aí, Flávio!
O brasileiro é muito mal-acostumado, nasceu achando que a natureza é presente de Deus. Somos um bando de sem-noção. Mesmo com a milícia fluminense mostrando as imensas vantagens de privatizar na marra o que deveria ser público, ele insiste em ir contra o progresso. Temos que acabar com isso, deputados e senadores!
Não só a praia. E a paisagem? Por que não permitir que empreendedores ganhem com a vista? O Arpoador, por exemplo. Basta cercar toda a Pedra e instalar poltronas. Um cinema premium e orgânico ao mesmo tempo. Quer aplaudir o pôr do sol com conforto e privacidade? Cem reais. Selfie na Enseada de Botafogo, com o Pão de Açúcar no fundo? Quarenta. Só para olhar? Vinte. E aquela deslumbrante vista da Lagoa e do Dois Irmãos, na saída do Rebouças? Faz um muro no meio da pista. Só vê quem for pela direita, pagando pedágio. Temos muito lucro dando mole nesse Brasilzão de Deus. Praias, florestas, paisagens, um monte de coisas grátis clamando uma roleta ou uma bilheteria.
É assim que vamos movimentar a economia e levar o país pra frente: tirando o que é de muitos para dar a poucos. Essa PEC é só o começo.