Rio ordenado fora de ordem

Andréa Albuquerque G. Redondo, setembro/2023

Urbe CaRioca

Rio ordenado fora de ordem

“Adoro a Humanidade. O que não suporto são as pessoas” (Charles Schultz)

“Cidade Maravilha, purgatório da beleza e do caos” (Em Rio 40 graus, música de Fernanda Abreu, Fausto Fawcett e Claudio Laufer, 1992)

Crédito: Guilherme Maia

Baseado em estudos sobre a evolução urbana do Rio de Janeiro, o artista Carlos Gustavo Nunes Pereira, conhecido por Guta (1952-2012), criou imagens da cidade, um passeio no tempo que começa com a natureza quase intocada, habitada por índios, descoberta pelos portugueses e cobiçada pelos franceses. Belos quadros nos transportam para o século XVI e nos trazem de volta ao início dos anos 2000.

As telas coloridas do ilustrador chamam à reflexão. Mostram construções já demolidas, substituídas por outras que seriam postas abaixo para dar espaço a novas erguidas em seu lugar, e que também viriam a ser desconstruídas. Morros a serem demolidos e morros hoje escondidos, no processo contínuo de renovação das cidades, quase tão ininterrupto quanto o girar da Terra.

Evolução, progresso, involução e retrocesso, pares opostos, caminham juntos em impensáveis paralelos. Os dois primeiros não garantem afastar os antagônicos.

Exemplo visível é a Avenida Paulo de Frontin, no bairro do Rio Comprido, atravessada pelo viaduto elevado que facilitou a circulação de automóveis do Centro à Zona Sul, e aniquilou o lugar antes bucólico e arborizado. Pode-se dizer o mesmo sobre o bairro do Catumbi, seccionado por igual motivo – a expansão viária comum nos anos 1950, que não foi privilégio dos cariocas, diga-se. Progresso para uns, destruição para outros.

Aqueles bairros jamais se recuperaram da agressão sofrida, instrumento para a perda da memória urbana, para o surgimento de ambientes inóspitos sob e ao redor dos viadutos, e desvalorizar a região: efeitos colaterais das pretensas melhorias.

A cidade é gente, as gentes fazem a cidade. A rua que leva de um lugar a outro nasceu para ligar, ser o locus de encontros, trocas, convívio social, alegrias e tristezas vividas a céu aberto ou sob guarda-chuvas que delas – as chuvas – nos guardam. Já foi de moradores, cavalos, carroças e bondes. Hoje pertence a motores. A praça é mais do que passagem. Pode ser destino, pousada, descanso. Lugar de contemplação, lazer, de alegrias compartilhadas. Se maltratada, assusta, afasta, torna-se inútil ou pior, maléfica. Ruas e praças nasceram para reunir as gentes que fazem a cidade, para criar elos.

Espaços públicos abandonados, relegados ao nada, morrem. Vão-se com eles a vida e a segurança. Empurram-nos para os templos de consumo batizados de ‘shoppings’. Transformação. Ruas agora são galerias, calçadas sem meios-fios com chamarizes de ambos os lados, sem distrações. Que não troquemos mesas e conversas nas calçadas e bares – ou mesmo nas galerias de lojas! – por telas, passeios virtuais, amigos e amores nascidos de algoritmos. Seria progresso?

Equilíbrio e harmonia também são fundamentais nos caminhos que buscam a proteção do patrimônio cultural edificado. É tema polêmico diante da voracidade do mercado imobiliário atuante em terras cariocas, ora para o bem, ora para o mal. Críticos das salvaguardas e autores de leis urbanísticas perniciosas são os mesmos que admiram os extratos de Roma, a Cidade Eterna, a obra de Haussmann em Paris, a Cidade Luz, e os bairros antigos da Cidade das Sete Colinas, Lisboa. À Cidade Maravilhosa dão as costas.

Somos jovens. Com menos de quinhentos anos de idade, não temos muralhas medievais nem castelos, mas podemos fabricar futuras memórias. Há que preservar espaços livres e obras feitas pela mão do homem. É a nossa história contada ao vivo com pedras, tijolos e cores. Há que evitar muralhas de edifícios a esconder a paisagem natural, repartir o céu e apagar a luz do dia.

Parafraseando Charles Schultz, “Adoro a minha cidade, abomino o que ela se tornou”. Quero a Cidade Inteira de Magalhães, não a Cidade Partida de Zuenir. Quero a cidade das gentes de volta. Quero o Rio em ordem, sua simpática desordem ordenada, base para lindas pinturas nos séculos do porvir. Contra o retrocesso, equilíbrio é a chave.

A Lapa, em 1758. Os arcos do aqueduto já estavam lá, mas a região era quase que totalmente despovoada. — Pintura: Guta/IPP

*Sérgio F. Magalhães, arquiteto, autor do livro Cidade Inteira

*Zuenir Ventura, jornalista, autor do livro Cidade Partida

 

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