As batatas

Crônica originalmente publicada na Página Oficinas Literárias Eduardo Affonso em 20/11/2023.

As batatas

“Ao vencedor, as batatas”(frase do personagem Quincas Borba no romance de mesmo nome)
Machado de Assis (1839-1908)

O homem saiu em disparada porta afora. Em uma das mãos levava um pacote, a outra apertava algo com força, nas costas a mochila surrada implorava por água e sabão. Ao ouvir o vendedor resmungar, para ela o inusitado passara a ser lugar comum. “De novo, de novo”, o empregado repetia. Resignado, a consolava, a mulher com os olhos arregalados frente ao inesperado.

Ela estava acostumada aos pedintes que perambulavam pelas ruas do bairro, a cada dia mais numerosos. Alguns eram figuras permanentes incorporadas à paisagem humano-urbana há anos. Melhor seria dizer desumana. Outros sumiam durante algum tempo e ressurgiam asseados, cabelos aparados, roupas novas, para novamente se entregarem à poeira da cidade.

Meninas pequenas cresciam, transformavam-se em mocinhas, barrigas antes inocentes logo se mostrariam redondas e crescidas. As meninas agora grandes retornariam com as crias no colo, quase crianças com outras sob sol e chuva, sempre à frente de mercados e farmácias esperando plantar compaixão e colher latas de leite.

Havia a mulher vestida com esmero, panos coloridos enrolados no corpo, casaco, enfeites nos cabelos, sacolas com os parcos pertences, e o inseparável telefone celular de brinquedo. A calçada era seu escritório. Caminhando sobre as pedras portuguesas resolvia todos os problemas da empresa imaginária que presidia.

Havia o menino que lia livros sentado no chão. Um dia desistiu da leitura que lhe prometera futuro melhor e passou a vender panos de prato. Mergulhado nas páginas atraia curiosos, recebia poucos dinheiros e muitos incentivos. A receita vinda dos paninhos coloridos fora maior do que as palavras de estímulo.

Havia o incansável que durante anos repetia “cinquenta centavos, cinquenta centavos”, até se cansar e inflacionar a moeda para “um real, pode me dar um real”, não se sabe se devido à desvalorização do dinheiro ou à escassez do metal redondo quase em desuso.

Lembrou-se do horror que sentiu quando criança, o homem com a perna estendida, a enorme atadura abaixo do joelho que deixava transparecer a ferida vermelha, a mão também estendida que pedia, o rosto desfigurado em dor. “_ Não ligue, querida, é de mentira. Ele põe um bife embaixo da gaze e faz cara de sofrimento para nos enganar”.

Gentes mais desvalorizadas do que a moeda nacional, desvalidos invalidados para a vida, vidas sem valor. Entre tantos devaneios ela fora à infância e voltara à velhice em uma fração de segundo. Retornara ao presente, à realidade na antiga quitanda que, tal como a mulher, resistia à modernidade.

Aquele mendigo era rosto novo nas redondezas. Andava com muletas. Pediu-lhe dinheiro. “_ Para quê? Vai comprar cachaça?”. “_ Não senhora, vou comprar comida, juro”. “_ Vamos à quitanda”. Levou o homem ao balcão das frutas. Maçã, banana, laranja, tangerina, saudável e fácil de comer, pensava. “_ Não senhora. Frita, quero batata frita”. “_ Mas, meu filho…”. Ouvidos moucos, claudicava entre as prateleiras à procura do que, para ele, era o néctar dos deuses, na boca o mantra. “_ Bataaata, Bataaata…, posso pegar dois sacos, dona?”.

Em frente à caixa registradora a boa senhora decidiu dar responsabilidade ao faminto. Abriu a bolsa. Sem dinheiro trocado, pegou a nota graúda e estendeu-lhe a mão. “_ Você mesmo deve pagar”. Mal reparou o brilho nos olhos dele antes que os dela se arregalassem. Um salto, um puxão certeiro, a nota espremida entre os dedos, o pacote na outra mão, as muletas embaixo do braço. Em uma fração de segundo o manco se transformara em atleta olímpico campeão dos cem metros rasos. Desapareceu.

À bondosa senhora restou o espanto. O homem curado nunca mais foi visto no bairro. Mas, a história logo correu de boca em boca. No dia seguinte havia uma fila na porta da quitanda. Todos à procura da batata frita milagrosa.

Andréa Redondo – Sou carioca, arquiteta, encantada por sons e palavras. No Serviço Público troquei as linhas desenhadas pelas linhas escritas. Adiante criei o blog Urbe CaRioca, onde misturo críticas e elogios ao Rio de Janeiro com toques de humor. Que novos desenhos, em crônicas, troquem o foco externo – a cidade – por aprendizado pessoal, e tragam experiências gratificantes a receber e a compartilhar.

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