Alterando a paisagem carioca, de Roberto Anderson

No artigo do arquiteto Roberto Anderson, publicado originalmente no Diário do Rio, um resumo da história das leis urbanísticas na Cidade do Rio de Janeiro, incentivadoras do mercado imobiliário de modo exacerbado e muitas vezes inadequado, de descaso para com o Patrimônio cultural e histórico, além do erro recorrente que aumenta gabaritos de altura e libera impostos. Tudo com resultados ora duvidosos, ora perniciosos.

Urbe CaRioca

Alterando a paisagem carioca

Roberto Anderson *

O Rio de Janeiro já teve administradores que em muito lhe modificaram a paisagem. Aliás, essa parece ser uma tradição. Desde a colônia, os responsáveis pela administração da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro aterraram várias de suas lagoas, alagados e praias, cortaram ou desmontaram seus morros e destruíram seus edifícios mais icônicos.

A partir de 1850, por indicação da Câmara, teve início o aterro do Saco de São Diogo e alagados vizinhos, o que permitiu o surgimento da Cidade Nova, do Estácio e do Catumbi. Já no século XX, Pereira Passos, demoliu a cidade de feição portuguesa e abriu novas avenidas, consideradas largas para a época. Carlos Sampaio não ficou atrás, e demoliu o Morro do Castelo, antigo berço da cidade. Com o Castelo, ruíram a igreja e o colégio dos jesuítas, os sobrados coloniais e a fantasia de tesouros ali enterrados. Henrique Dodsworth, a exemplo de Passos, demoliu centenas de sobrados e a Igreja de São Pedro dos Clérigos, para abrir a avenida Presidente Vargas. Na década de 1950, uma série de prefeitos indicados pela presidência da República quase arrasaram por inteiro o Morro de Santo Antônio.

Mais para o fim daquele século, o prefeito Marcos Tamoio, ao alterar legislações sobre gabaritos, interferiu de forma extremamente negativa na paisagem da Zona Sul, com a permissão de construção acelerada de altos edifícios. Tão altos, que aqueles da orla passaram a sombrear a areia da praia. Mas nenhum desses teve a possibilidade de alterar tanto a paisagem carioca, e de forma tão abrangente, como Eduardo Paes. Estando em seu terceiro mandato, e com um estilo de atuação bastante ousado, para o bem ou para o mal, vem mudando profundamente a imagem da cidade.

Na Área Portuária, Paes produziu a demolição de uma obra infame do período rodoviarista, o Elevado da Perimetral, mas levando junto armazéns, galpões e ruas de paralelepípedos que caracterizavam a atividade que antes ali era exercida. No Catumbi, demoliu a antiga fábrica da Brahma para no seu lugar ver surgir um elefante branco de vidros espelhados, que até hoje não tem quem ocupe. Na Lapa, com a desculpa de afastar garotos de rua, destruiu o anfiteatro que existia junto aos Arcos.

Estas são apenas as mudanças mais evidentes operadas pelo atual prefeito na imagem da cidade. Mas, a exemplo de Marcos Tamoio, é no campo das alterações das legislações de edificação e de uso do solo, e nas consequências que elas provocam, que o prefeito vem promovendo uma transformação que poderá impactar negativamente, e de forma disseminada, a paisagem carioca. Seguindo os ensinamentos de Marcelo Crivella, o prefeito fez retornar a possibilidade de legalizar puxadinhos construídos irregularmente, o “mais valia”, e aquelas irregularidades ainda em projeto, o “mais valerá”. Tudo mediante pagamento, naturalmente.

Na área das Vargens, o prefeito conseguiu aprovar uma legislação rejeitada pelos moradores, que aumenta os seus níveis de ocupação. Na Lagoa de Marapendi, para a criação de um campo de golfe para as Olimpíadas, o prefeito eliminou o trecho que faltava executar da avenida-parque Prefeito Dulcídio Cardoso.

Para tentar viabilizar a ocupação do Centro com moradias, uma medida correta, o prefeito recorreu a incentivos à construção ali de edifícios residenciais, o Reviver Centro. No entanto, tais incentivos têm como consequência o adensamento de bairros da Zona Sul. Com a resposta insatisfatória do mercado imobiliário, viciado em Barra e Zona Sul, bairros que ainda continuam largamente disponíveis para seus projetos, o prefeito dobrou a proposta, enviando à Câmara o Reviver Centro 2, ou PLC 109/2023. Por esse projeto, ainda em discussão na Câmara de Vereadores, a mesma área edificada no Centro poderá ser replicada em uma vez ou uma vez e meia (em caso de habitação social) em bairros das zonas Sul e Norte, Barra e Recreio. Ou seja, esses últimos bairros “pagam” com mais adensamento o “favor” das construtoras em edificar no Centro.

O prefeito propôs também a liberação total em altura para prédios entre o Castelo e a Candelária. Ali, exemplares icônicos da arquitetura modernista, como a ABI, o MEC e o antigo Instituto de Resseguros, além de belos prédios Art Déco e ecléticos, poderão ter que conviver com torres de mais de cinquenta pavimentos, ou mesmo serem derrubados para darem lugar a elas. Mas, alguém imagina que o mercado imobiliário se sentiu plenamente contemplado? Em acordo com os vereadores, seus representantes conseguiram que os benefícios, anteriormente propostos para novas edificações na área entre Castelo e Candelária, também fossem estendidos para todo o Centro, ou seja, sobre áreas do Corredor Cultural, Cruz Vermelha e outras áreas preservadas.

Paes só teria produzido encrencas? Não, que o digam os parques de Madureira, de Deodoro e o futuro Parque de Realengo. E também o VLT e o BRT, apesar de seus problemas. Mas, até aqui, nenhum prefeito, seja através de obras, seja através de mudanças na legislação urbanística teve a capacidade de tanto interferir na paisagem construída da cidade. É bom lembrar que essas mudanças na legislação, que são referendadas pela Câmara de Vereadores, costumam provocar alterações por um longo prazo, ou seja, continuarão a gerar efeitos (e defeitos) bem após o fim do atual mandato do prefeito.

* Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural – Inepac, onde chegou à sua direção-geral.

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