Artigo – INTEGRIDADE DO PLANEJAMENTO URBANO NO RIO: PRINCÍPIO A SER PRESERVADO, de Sonia Rabello

A mais recente lei urbanística que concede mais benefícios para edificações hoteleiras – além das inúmeras criadas pelo Pacote Olímpico 1, em 2010 – prevê o aumento da chamada ‘placa’ ou ‘embasamento’, parte inferior de edifícios em geral, além do que se convencionou chamar de ‘torre’, tipologia comum na cidade incentivada particularmente a partir dos anos 1970.


Como é sabido, foi vetada pelo Prefeito, devolvida à Câmara e derrubado o veto – tudo em prazo recorde na sessão extraordinária do último dia antes do recesso parlamentar, ainda sob a nuvem de incredulidade que distraía muitos brasileiros no final da Copa do Mundo.
O tema foi objeto de várias análises neste blog (EXTRA! HOTÉIS: OUTRO PACOTE, NOVAS BENESSES e HOTÉIS E BENESSES: CRESCE A POLÊMICA), inclusive com a reprodução do artigo de Sonia Rabello CÂMARA DO RIO FAZ VOTAÇÃO BENEFICENTE EM RECESSO PROCRASTINADO.

Mais uma vez a professora e advogada nos brinda, agora com avaliação aprofundada sobre o tema a partir da declaração do Chefe do Executivo publicada pela imprensa, sob o foco de princípios jurídicos e jurisprudências formadas. O artigo foi publicado originalmente em seu site que tem o subtítulo A Sociedade em busca do seu Direito. Que o encontre.


Boa leitura.

Urbe CaRioca
24 | Julho | 2014

Sonia Rabello
“Eu não posso declarar (o projeto) inconstitucional. O que eu posso fazer é recorrer ao Poder Judiciário para tentar mostrar a ilegalidade da lei.” (“O Globo”, 23 de julho de 2014).
É o caso da recente aprovação pela Câmara do Rio das benesses urbanísticas para novos hotéis.



Com estas palavras o prefeito do Rio recusa a assertiva de que leis de uso e ocupação do solo, que decodificam e implementam o Plano Diretor da Cidade, são leis de sua iniciativa, e, por outro lado, admite ser possível que leis de uso e ocupação do solo possam ser objeto de projetos picotados, fora do planejamento geral e integrado da Cidade.
Ledo engano, como veremos, muito resumidamente a seguir.
Primeiramente, temos que reconhecer que o assunto não é simples, e requer um pouco mais de sofisticação em seu trato, diferentemente do que vem acontecendo. Mas não é difícil de entender, até para um leigo.

1. O planejamento das cidades, como determina a Constituição Federal, parte necessariamente de uma lei macro e geral chamada Plano Diretor (art.182 §1º) – o plano diretor é “o instrumento básico da política de desenvolvimento urbano”. Mas, evidentemente, o planejamento urbano municipal não se resume à lei do plano diretor. Planejamento urbano é muito mais, e se faz não só com o Plano Diretor, mas também com um conjunto de leis, da mesma natureza, que instrumentalizam o planejamento.

2. Portanto, as leis de uso do solo que fixam índices de ocupação e formas de construir, nada mais são do que a decodificação do plano, ou, em outras palavras, o plano decodificado. Por isso, o conjunto de leis que materializam as diretrizes do plano diretor de uma cidade têm, necessariamente, uma relação filial, técnica, direta – e auferível – com as diretrizes do Plano Diretor. Sendo elas o plano decodificado são, também, por conseguinte, objeto constituinte e inafastável do processo de planejamento urbano.

Para iluminar este raciocínio vejamos o que dizem, sistematicamente, o § 1º e o § 4º do art. 40 do Estatuto da Cidade.
§1º do art. 4º: “O plano Diretor é parte integrante do processo de planejamento municipal, devendo o plano plurianual, (…)”
e mais:
“§ 4º: No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão:
I – promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade.
                                                                                                                               II – publicidade quanto aos documentos e informações produzidos;                                                                                                         
III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações produzidos.”

Ao se referir a processo de planejamento, do qual o plano diretor é parte, como ponto de partida, não devemos olvidar o que diz o art.4º, III do Estatuto da Cidade ao se referir aos instrumentos do planejamento municipal, já que com a sua leitura podemos entender  perfeitamente o porquê de não ser possível supor, nem interpretar, que somente a lei do plano diretor constitui, só ela, a totalidade do planejamento urbano de uma cidade.
Diz textualmente o art. 4º, III do Estatuto da Cidade (lei federal que institui e disciplina normas gerais de direito urbanístico):
Capítulo II – Dos Instrumentos da Política Urbana. Seção I – Dos instrumentos em Geral:
art. 4º: Para fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos: I – (…) II- (…)
III – planejamento municipal, em especial:
a) plano diretor;
b) disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo;
c) zoneamento ambiental;  (…) “
Portanto, conclui-se, forçosamente, que as leis de uso e ocupação do solo são leis integrantes do planejamento municipal. Ou não?

3. E agora vejamos o que diz a Lei Orgânica do Rio, nos seus arts. 44 e 71:
“art. 44: Cabe a Câmara Municipal, com sanção do Prefeito, legislar sobre todas as matérias de competência do Município e especialmente sobre:
III – políticas, planos e programas municipais e locais e setoriais de desenvolvimento. [desenvolvimento urbano é um desses setores, obvio]
“art. 71:  São de iniciativa privativa do Prefeito as leis que: (…)
II – disponham sobre: (…) e) matérias constantes do art. 44, incisos II, III, V, VI, e X”.

4. Assim, seria um erro muito elementar, e contrário às diretrizes do Estatuto da Cidade, entender que a política de desenvolvimento urbano, materializada e instrumentalizada através de leis, se resume unicamente à lei do plano diretor, só porque esta lei tem o nome de “plano” no nome”!  Entender deste modo, além de muito rudimentar, seria permitir a fraude ao processo de planejamento da cidade, contrariando também o que dizem os arts.452 e 453 da LOM-Rio.


5.  Conclue-se, portanto, que não só o processo legislativo da lei de benesses de hotéis é ilegal, por desatender frontalmente as diretrizes do Estatuto da Cidade e do Plano Diretor do Rio, como também é formalmente inconstitucional, pois contraria a iniciativa privativa do prefeito que detém a prerrogativa deste processo legislativo. Ou seja, conforme dispõe o art. 71, II, é da iniciativa do chefe do executivo o conjunto de leis leis que integram os instrumentos de planejamento municipal; não só a lei do plano diretor, como também as leis de uso e ocupação do solo, conforme determina o Estatuto da Cidade, no seu art. 4º, III.

Portanto, é inaplicável, no caso a decisão do STF, pois, no Município do Rio, existe sim, em sua Lei Orgânica, norma que reserva ao chefe do Executivo iniciativa de leis que disponham sobre planos, políticas e programas de desenvolvimento, no qual está incluído, obviamente, o planejamento urbano!

6. Finalmente, e como se não bastasse isso, cabe remarcar que em decisão pretérita, não muito distante no tempo, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no caso dos apart-hotéis de Ipanema, entendeu inconstitucional lei que alterava pontualmente uma forma de ocupação no bairro, (ainda que de iniciativa do Prefeito de então), porque estava fora de um processo de planejamento geral, técnico e integrado. É o famoso princípio da isonomia no tratamento de todos pelas leis, princípio este de fácil discurso, mas de difícil execução. (neste sentido tb pelo TJ-SP e fundamento)


Em prol da integridade do planejamento urbano do Rio, o que se espera do prefeito é que ele negue o cumprimento desta lei (e de outras leis similares a esta que estão sendo aprovadas) e imediatamente proponha a ação judicial pertinente.
Se quiser mesmo, ele pode.


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