Autoridades precisam sentir na pele o caos no transporte, por Andréa Redondo

Por Andréa Redondo – O Globo

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Janelas abertas: passageiros sofrem com o calor em ônibus que deveria ter ar-condicionado — Foto: Márcia Foletto/Agência O Globo/Arquivo

Passageiros permanecem durante horas em ônibus lotados, ruidosos e abafados, no ‘Rio 40 graus’ de Fernanda Abreu

No filme francês “Entre dois mundos”, a personagem interpretada por Juliette Binoche é escritora, fato de que o espectador ganha ciência no avançar da projeção. Para escrever sobre as dificuldades da classe trabalhadora francesa, decide viver sua realidade. Muda-se de Paris para uma cidade portuária e, sob nome falso, emprega-se como faxineira. O trabalho exaustivo intensifica-se quando passa a integrar a equipe noturna dedicada a limpar, em tempo exíguo, cabines da balsa que transporta passageiros entre a França e a Inglaterra. O livro a ser escrito exporá as condições precárias a que mulheres se submetem para sobreviver com parcos recursos vindos do trabalho honesto.

O paralelo com a situação enfrentada por cariocas e fluminenses no transporte público é sugestivo. Na diária e incessante viagem casa-trabalho-casa, a exaustão e o desconforto são a regra.

O metrô é insuficiente e parcial. Há obras abandonadas, imprescindíveis, como a conclusão da Linha 2 e as estações Cruz Vermelha, Carioca nível 2, Morro de São João e Gávea. Adotaram-se prioridades equivocadas em nome dos Jogos Olímpicos, como a extensão da Linha 1, chamada abusivamente de Linha 4. Tivesse sido feita em seu desenho original — rota entre Botafogo e Gávea, via Jardim Botânico — reduziria trajetos e tempo de viagens. Optou-se pela sobreposição de traçados. A escolha levou à construção de uma “gambiarra” em Ipanema, que uniu percursos e gargalos à ineficiência e alimentou o descaso com os passageiros.

Nos trilhos do VLT, trenzinhos elétricos circulam no Centro, ambos vazios — os vagões e o coração da cidade por reviver —, enquanto a rede de trens, sucateada e ineficiente, repleta de trabalhadores valentes e cansados, serve mal aos subúrbios e municípios vizinhos.

O BRT — Bus Rapid Transit, criado “pra Olimpíada” — é cópia do pioneirismo de Curitiba de meio século atrás, então com 650 mil habitantes. No Rio do século XXI, com população perto de 7 milhões, esperamos o Rapid e convivemos com o agravamento do sempre congestionado Transit. Demonstra-se o insucesso quando o criador cogita transformar a criatura em VLT, inadequado para o transporte de massa.

Os problemas extrapolam o Rio de Janeiro. Segundo o Moovit Global Public Transport Report 2024, disponível em www.moovit.com, cinco capitais brasileiras estão entre as dez cidades com maior tempo médio de viagem. Campeão nesse triste pódio invertido, o Rio é seguido por Brasília, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre.

Na ficção, a insegurança no trabalho e as exigências braçais exaurem as operárias. Revelar a identidade oculta da protagonista — escritora bem-sucedida, distante de banheiros por limpar — provoca reações antagônicas das colegas de ocasião: desprezo das que se sentem enganadas, agradecimento das que entendem o propósito da empreitada, dar visibilidade ao invisível e gerar mudanças. Nas nossas metrópoles, o transporte fornece histórias suficientes para vários livros por modal.

A lenda urbana reza que, se os governantes usassem o transporte público, haveria empenho em garantir eficiência e conforto aos que dele dependem, o que se aplica aos serviços públicos essenciais. Acompanhar o noticiário é pouco. Há que sair de um mundo, sentir o outro planeta real na pele e, tal como a escritora vestida de operária transporta nas mãos balde e vassoura, levar empatia e determinação.

*Andréa Redondo é arquiteta

Comentários:

  1. Perfeito, Andréa.
    A questão dos transportes e da mobilidade urbana guarda histórica relação com a especulação imobiliária. Certos meios de transporte foram e são utilizados para afastarem a população mais pobre das áreas mais valorizadas. Os pobres só são bem-vindos para prestarem serviços, não para morarem próximos aos seus patrões que, em regra, adoram uma segregação.

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