Como construir obras inacabadas, de Sérgio Magalhães

Publicado originalmente no O Globo – 05.02.2023

Sem atenção ao projeto, as obras no Brasil melhoraram de qualidade? Os preços ficaram estáveis?

Por Sérgio Magalhães

Escola inacabada em Afonso (ES) – Foto: Divulgação/FNDE

Contam-se aos milhares as obras há anos inacabadas de creches e escolas pelo país. O GLOBO mostrou que 4 mil estão nessa condição, segundo o Ministério da Educação. Convém contextualizar.

Em 2011, o governo definiu a meta de construir 6 mil creches até 2014. Mas, ao fim de 2013, apenas 1.100 estavam concluídas, e mais de 4.800 não tinham iniciado ou estavam paralisadas. Ante a “emergência”, contratou outras 3.000 creches, em dois modelos, apesar das diferenças climáticas e ambientais do país. Ao que se sabe, a meta inicial continua inalcançada.

Nos anos 1990, a prefeitura de São Paulo construiu “em emergência” as famosas “escolas de lata”, com graves problemas construtivos e ambientais. Os governos seguintes tiveram de substituí-las devido à má qualidade.

Obras paralisadas, mal construídas, com sobrepreço são comuns Brasil afora, como sabemos. Tal quadro não se estabelece por acaso.

É notória a ojeriza de governantes ao planejamento e à elaboração de projetos. Projetos estruturam o pensamento. Projetos para obras são instrumentos para definir previamente o que se deseja construir e seu custo.

No Brasil, vige a ideia de que elaborar um projeto significa ampliar os prazos para alcançar o objeto de desejo, a obra. Não importa que a experiência internacional demonstre o contrário, aqui o projeto é mal visto entre gestores públicos apressados.

É sabido que o projeto finalmente elaborado para o famoso Empire State Building, em Nova York, então o edifício mais alto do mundo, permitiu que a construção levasse apenas 13 meses. E Brasília? A partir de concurso de projetos para o Plano Piloto, a capital foi transferida em três anos.

O projeto tem valor para além da obra. Na França, as obras públicas decorrem de concurso de projeto, mais de 3 mil a cada ano. O país não aderiu ao protocolo europeu de licitação de obras porque considera que a expressão arquitetônica é formadora da identidade nacional. E é, lá e em qualquer lugar.

Ao revés, vimos no nosso país o abandono do projeto. Isso se deu no âmbito regional, no urbano e no edilício. Sem planejamento, o território está à mercê do improviso. Nossas cidades, sem rumo, apresentam a tragédia cotidiana a que são submetidas populações crescentes; sem boa cidade, não se reduz a desigualdade nem prospera o país.

Convém lembrar: em 1998, permitiu-se à Petrobras contratar obras com projeto incompleto; em 2008, lei federal admitiu que o anteprojeto (etapa inicial de um projeto) fosse suficiente para contratar obras de penitenciárias. Depois, também para obras do Minha Casa Minha Vida e do Programa de Aceleração do Crescimento; a seguir, para obras da Copa e da Olimpíada. Seguiu-se o caminho da “simplificação”, dispensando finalmente, em 2015, todas as obras públicas federais, estaduais e municipais da exigência de prévio projeto completo para ser feita a licitação da construção. O Regime Diferenciado de Contratação (RDC), da Lei de Licitações, passa a permitir que a empreiteira, depois de contratada, elabore o projeto a construir. Claro, à sua conveniência. É a carroça à frente dos bois. Ou a raposa a cuidar do galinheiro.

Apesar da rica experiência de projetos brasileira, de grandes infraestruturas a edificações icônicas, também populares, como o Conjunto do Pedregulho e o Favela-Bairro, no Rio, o país tem desconsiderado seu corpo profissional projetista. A derrocada das empresas de projetos de engenharia, orgulho nacional, com relevantes serviços no país e no exterior, é um triste corolário. Escritórios de arquitetura veem-se em quase extinção.

Será possível atender aos compromissos do clima e da redução das desigualdades sociais sem pensar transversalmente, articulando os diversos elementos constituintes, tarefa essencial da atividade de projeto? Sem atenção ao projeto, as obras no Brasil melhoraram de qualidade? Os preços ficaram estáveis? Foram concluídas no prazo?

O desafio está colocado nestes tempos de reconstrução do país. Oxalá o tema seja considerado entre os propósitos do governo que se inaugura.

*Sérgio Magalhães é arquiteto

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