No artigo reproduzido a seguir, publicado originalmente no jornal O Globo, o arquiteto e cronista Eduardo Affonso trata da lei aprovada pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro que proíbe “manter ou instalar monumentos, estátuas, placas e quaisquer homenagens que façam menções positivas e/ou elogiosas a escravocratas, eugenistas e pessoas que tenham perpetrado atos lesivos aos direitos humanos, aos valores democráticos, ao respeito à liberdade religiosa e que tenham praticado atos de natureza racista”.
O autor relembra que o projeto recém aprovado é similar ao que tramita na Câmara dos Deputados e pretende impor a mesma medida em todo o país — substituindo os proscritos por “personagens históricos negros ou indígenas, escolhidos democraticamente e conforme a pluralidade, a heterogeneidade, a representatividade e a paridade de gênero”.
“Já pensou se os antitabagistas conseguirem retirar as estátuas de fumantes? Se os veganos quiserem a remoção das estátuas dos carnívoros? Se os abstêmios resolverem que quem consumia álcool não merece homenagem em local púbico?”, questiona.
Comentamos o assunto na postagem anterior no post intitulado “Sobre pretensas remoções e proibições de estátuas”. É de se indagar se os dedos apontados para os futuros removidos investigarão a contribuição dos mesmos para com o desenvolvimento do país. E se os futuros homenageados serão premiados caso tenham participado de atos questionáveis.
Note-se que a lei, da lavra de quatro vereadores, foi promulgada, isto é, o Prefeito não a sancionou, o que mostra discordância ou decisão deliberada de não opinar. Lava as mãos como Pôncio Pilatos.
Urbe CaRioca
Controlando o passado e o futuro
É anacrônica a pretensão descabida de medir o passado com a régua dos nossos dias, de vigiar e punir retroativamente
No ângulo mais nobre da Central do Brasil, há uma figura em bronze de autoria de Rodolfo Bernardelli, um dos maiores escultores do país. O homenageado é Cristiano Otoni, responsável pela primeira ferrovia brasileira.
Despeça-se dela — da estátua, não do que restou da nossa malha ferroviária. Em breve, ela pode ter o mesmo destino do busto do Padre Antônio Vieira (por enquanto na PUC) e de uma centena de outras obras de arte.
Sim, o “pai das estradas de ferro” e o “imperador da língua portuguesa” estão para ser apeados de seus pedestais. A Câmara Municipal do Rio de Janeiro proibiu “manter ou instalar monumentos, estátuas, placas e quaisquer homenagens que façam menções positivas e/ou elogiosas a escravocratas, eugenistas e pessoas que tenham perpetrado atos lesivos aos direitos humanos, aos valores democráticos, ao respeito à liberdade religiosa e que tenham praticado atos de natureza racista”.
O projeto, de vereadores do PSOL, é bem parecido ao de parlamentares do PSOL e do PCdoB que tramita na Câmara dos Deputados e prevê impor o mesmo em nível nacional — substituindo os proscritos por “personagens históricos negros ou indígenas, escolhidos democraticamente e conforme a pluralidade, a heterogeneidade, a representatividade e a paridade de gênero”.
(Será que vão retirar as estátuas de Getúlio Vargas, Luís Carlos Prestes e o monumento a Marighella? O respeito aos direitos humanos e à democracia passava longe…)
O mais grave das leis propostas pelos zelosos progressistas é seu anacronismo: a pretensão descabida de medir o passado com a régua dos nossos dias, de vigiar e punir retroativamente.
Cristiano Otoni não era um escravocrata, mas acreditava que a escravidão haveria de desaparecer naturalmente, sem necessidade de leis que interferissem nos “direitos” dos senhores. Um homem do seu tempo, que acharia normal o voto ser privilégio masculino, a palmatória um recurso pedagógico e que se comesse papagaio flambado, arara assada e guisado de jacu — até porque nada disso era crime.
Se um dia houver uma bancada vegana com a mesma sanha, pode ser que mandem banir da paisagem as estátuas equestres e os carnívoros de mármore ou metal. Como Tom Jobim, que hoje carrega seu violão, em Ipanema, num doce balanço a caminho do bar — e da churrascaria, conivente com o massacre de seres sencientes para a obtenção de picanha, linguiça e torresmo. Se fez boa música, pouco importará.
Talvez os antitabagistas do futuro proíbam tributo a fumantes — e o Leme dirá adeus a Clarice Lispector, e a Vila a Noel Rosa (se não arrancarem também suas canções, que ecoam em pedra portuguesa sob os pés de quem flana pelo Boulevard Vinte e Oito de Setembro).
Millôr deixará para sempre o pôr do sol do Arpoador, e Vinícius de Moraes as tardes em Itapuã — é só voltar a Lei Seca e vetarem homenagens a quem apreciava um uísque.
Melhor se as futuras estátuas não forem de bronze ou ferro fundido, mas de gelo. Com os valores mudando cada vez mais rapidamente — e, com eles, a fúria de reescrever a História —, o que era sólido ontem já estará derretido no dia seguinte, dispensando leis, guindastes ou exílio nos porões. Para gáudio dos progressistas, o passado nunca terá existido.
Demonstra a inutilidade do ou dos proponentes na vida pública. É falta do que saber fazer diante de tantos problemas que afligem os cidadãos. Desnecessário entrar na discussão desse assunto.