Muito escrevemos neste espaço sobre as leis urbanísticas que legalizam o irregular e, mais recentemente, aprovam o ilegal, tudo mediante pagamento. Nas favelas – ou comunidades – constrói-se ao bel-prazer, para moradia ou para aluguel. São várias cidades no mesmo Rio de Janeiro, diferentes paisagens, diferentes feições, diferentes regras.
Ora se faz vista grossa – há mais de um século, diga-se – seja por incompetência, impossibilidade, leniência, tolerância em função de problemas sociais jamais resolvidos, ou desejo de manter os apelidados currais eleitorais. Ora o poder público age demolindo migalhas diante do gigantesco volume de construções erguidas sem licença. A mídia mostra. O tempo passa. O irregular continuam no ciclo eterno que molda a urbe carioca. Abaixo, notícia sobre mais uma investida sobre percentual mínimo da ilegalidade que grassa no solo urbano do Rio.
Urbe CaRioca
Prefeitura do Rio diz que demolição de condomínio do tráfico na Maré é feita à mão e não tem data para terminar
Empreendimento de 40 prédios estava sendo construído pelo Comando Vermelho sem qualquer tipo de licença ou regras urbanísticas
Por Bruna Martins e Selma Schmidt — O Globo
Uma operação da prefeitura e da polícia, iniciada ontem no Parque União, no Complexo da Maré, revela como o tráfico expandiu seus negócios para além da venda de drogas. Dezenas de agentes foram mobilizados para chegar ao Condomínio Novo Horizonte, empreendimento de 40 prédios que estavam sendo construídos pelo Comando Vermelho sem qualquer tipo de licença ou regras urbanísticas. Segundo a Secretaria municipal de Ordem Pública (Seop), responsável pela demolição, as construções serão derrubadas à mão, pois retroescavadeiras não conseguem chegar ao local. A Seop não estima prazo para pôr abaixo todo o condomínio.
Os engenheiros da prefeitura calculam que a demolição do condomínio vai causar um prejuízo de R$ 30 milhões ao tráfico. Os prédios foram erguidos numa área de 3.314 m², que há quatro anos estava vazia. Ao lado ficam o campo de futebol de um clube e o Ciep Professor César Pernetta, da rede estadual. A ação de ontem começou a ser organizada no início de julho, quando a Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) pediu a interdição dos prédios. As investigações apontaram que, assim como o Novo Horizonte, outros empreendimentos estão sendo construídos na Maré para lavar dinheiro acumulado com o comércio de drogas.
Entre os imóveis, que começaram a ser demolidos, há duas coberturas de alto padrão, com piscina, cozinha gourmet, cascata e banheira de hidromassagem, avaliadas pelas autoridades em R$ 5 milhões. Uma delas seria para o chefe do tráfico, Jorge Luís Moura Barbosa, o Alvarenga, que tem 86 anotações criminais. Além da Delegacia de Repressão a Entorpecente (DRE), participaram do início da operação de ontem agentes da Polícia Militar e do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco/MPRJ).
Closet, split, porcelanato
A maioria dos imóveis estava ainda na fase de alvenaria. Mais modernos, eles destoam das casas do restante da comunidade. Nas coberturas de luxo, chamou a atenção que ao redor de uma das piscinas já havia espreguiçadeiras. A cozinha do apartamento de quatro andares, que seria para o chefe do tráfico, foi toda feita com porcelanato preto. Na outra cobertura, os policiais encontraram uma suíte com closet — onde as prateleiras com iluminação de LED já estavam instaladas —, a cabeceira de madeira da cama já presa à parede e o banheiro com duas pias e banheira, além de ar-condicionado split.
Para o arquiteto e urbanista Luiz Fernando Janot, professor da UFRJ, a expansão imobiliária nas favelas — protagonizada pelo tráfico, pela milícia ou pelos dois grupos associados — é resultado da ausência do Estado nessas áreas, “não só através de forças policiais, mas também da oferta de serviços públicos e de infraestrutura para melhorar as condições de quem mora nessas áreas”.
— Diante disso, o bandido diz: “Aqui pode se fazer tudo”. Em outros lugares, você não pode sair construindo, mas dentro da favela pode. Como é o esgoto dessas construções? Qual o rigor adotado para garantir a segurança dessas edificações? Construções exigem técnica. Às vezes, elas estão em locais planos; outras, em encostas — diz.
Imagens do programa Google Earth, feitas por satélite, mostram a expansão desenfreada na Maré. Em janeiro de 2020, no terreno do Novo Horizonte, havia um estacionamento, uma área de vegetação e parte de uma estrutura que lembra a de um galpão. Em julho de 2021, parte da vegetação havia sido removida, e o estacionamento, desfeito. Também surgem marcações no chão, como se fossem ruas. Um ano depois, em julho de 2022, o esboço das edificações é flagrado.
A situação se reproduz em outros trechos da Maré, como junto ao Canal do Cunha, à Linha Vermelha e à Ponte do Saber. Naquele trecho, as construções se multiplicaram em 12 anos, como mostram as imagens de satélite.
As cerca de 300 unidades estavam sendo vendidas por valores entre R$ 40 mil e R$ 80 mil, ou alugadas por cerca de R$ 1.200.
— Havia até financiamento próprio concedido por uma pessoa que se passa por corretora de imóveis naquela região. O financiamento era a perder de vista, e os recursos seriam investidos em novas construções, novas grilagens — explica o titular da DRE, Rodrigo Coelho, destacando que a irregularidade vem acompanhada de furto de água e de energia. — É um combo completo.
Sobre quem estava à frente da negociação dos imóveis, o delegado afirma que há alguns nomes, “que giram em torno de associações”, mas que ainda não podem ser divulgados.