Sérgio Magalhães nos brinda com mais um artigo sobre a questão habitacional não apenas na cidade do Rio de Janeiro, mas como vem sendo praticada no Brasil há décadas, perpetuada com o equivocado programa Minha Casa Minha Vida. Criador dos programas Favela-Bairro e Rio-Cidade, bem sucedidas realizações do governo municipal do Rio de Janeiro na década de 90, o arquiteto, então Secretário Municipal de Habitação, inovou o olhar sobre as favelas cariocas e o que entende como esforço próprio dos moradores na ausência de crédito para a construção e escolha de lugares adequados para implementar moradias integradas à malha urbana dita formal. Os programas Morar Carioca e Morar sem Risco, também de sua lavra, como os dois primeiros foram abandonados em governos posteriores.
Infelizmente os erros prosseguem, como o anunciado conjunto MCMV a ser construído no terreno da antiga Estação Leopoldina, que merecia destinação voltada para toda a população, como um parque, extensão da Quinta da Boa Vista, em nome do Meio Ambiente e da arborização necessária junto à Praça da Bandeira.
Boa leitura.
Urbe CaRioca
Favela abre espaço a Marçais e Trumps
Famílias em moradias precárias apoiam-se em comunidades religiosas, apostam em salvadores da pátria
Por Sérgio Magalhães – O Globo
O poeta Antônio Cícero há alguns anos, no Instituto de Arquitetos do Brasil, alertou sobre a impropriedade de tratarmos as favelas por comunidade. Para ele, favelas mais se aproximavam do conceito de sociedade, “onde os indivíduos são diversos, e os mais opostos convivem e contribuem uns com os outros”. O filólogo Antônio Houaiss atribui o termo comunidade ao “conjunto de indivíduos com determinada característica comum, inserido em sociedade maior que não partilha suas características fundamentais”.
O IBGE, no Censo de 2010, designava as favelas por “aglomeração subnormal” e, em revisão conceitual, passou a tratá-las por “Favelas e Comunidades Urbanas”. O instituto as caracteriza por lugares com “predomínio de edificações e arruamento autoproduzidos por parâmetros distintos dos definidos pelos órgãos públicos”. E que apresentem “ausência ou oferta precária de serviços públicos”. Assim constatou haver 8,1% da população brasileira vivendo em favelas, em 6,5 milhões de domicílios. (Não só em cidades do Sul-Sudeste; o Estado do Amazonas tem 34,7% da população morando em favelas.)
Convém ampliar o entendimento.
O “predomínio de edificações autoproduzidas” em áreas com “oferta precária de serviços públicos” é uma realidade que talvez alcance metade do Brasil urbano. Portanto não seria próprio apenas de favelas ou de comunidades urbanas.
É essa família que, sem financiamento, é levada a autoconstruir na precariedade construtiva e ambiental, em geral à margem das regras municipais, em favelas ou loteamentos sem infraestrutura. De onde, para se deslocar, gasta exageradas horas em transporte ineficiente e caro. É parte dessas famílias que, em tais condições, apoia-se em comunidades religiosas para vislumbrar mínima coesão social e respeito, nega adesão à política institucional, aposta em salvadores da pátria.
Ao desconsiderar programas de urbanização de favelas e loteamentos populares, beneficiando negócios tipo MCMV, o Estado sinaliza desprezo pelo esforço despendido pelas famílias. Deixou no abandono esses territórios, facilitando a dominação bandida, matriz da insegurança urbana. Ainda, sem política de mobilidade adequada, permite que metrópoles tenham modais de transporte público desarticulados, à mercê de idiossincrasias dos governantes eventuais.
Embora as cidades constituam um patrimônio magnífico, seu quadro urbanístico lastimável tem consequências sociais, econômicas e políticas devastadoras. Nelas vivendo 85% dos brasileiros, lamenta-se que parcelas importantes da população, tragadas pela onda que aumenta as desigualdades e reduz direitos e esperanças, também apostem em seus salvadores de ocasião — ainda que estes, paradoxalmente, possam ser parceiros da promoção dessa mesma onda.
*Sérgio Magalhães é arquiteto e urbanista