Mais uma opinião sobre a ‘Tirolesa’,de Ruth Aquino

Em continuidade ao debate sobre o polêmico projeto para implantação de mais cabos aéreos entre o Pão de Açúcar e o morro da Urca no Rio de Janeiro – com vistas à instalação da chamada “Tirolesa” – alvo de inúmeras manifestações públicas de diversos grupos e representações refletindo a discordância com as intervenções, a opinião da jornalista Ruth de Aquino, publicada originalmente no jornal O Globo.

Conforme postagens anteriores neste espaço urbano-carioca, tal como a Roda-Gigante vetada na Enseada de Botafogo e levada para a Região Portuária, entendemos que a atração deva ser criada em outro local da cidade, onde faltem atividades de lazer e que a “Tirolesa” contribua para qualificação do entorno.

Urbe CaRioca

A Tirolesa do Pão de Açúcar é um equívoco – e, talvez, um crime

Nem a Unesco consegue confirmar se o Rio corre o risco de perder o título de Patrimônio Mundial. Que se embargue a obra e se informe direito a população, os órgãos competentes e a prefeitura

Por Ruth de Aquino – O Globo

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Crédito: Andrea Redondo – Vista, com zoom, a partir da Rua Marechal Cantuária, Urca

Tirolesa é um esporte radical com origem no Tirol, Áustria. Um cabo aéreo ancorado entre dois pontos, pelo qual nos deslocamos com ajuda de roldanas e mosquetões. A ideia no Pão de Açúcar é uma “multi-tirolesa”, que percorreria, entre os dois morros, 755 metros em menos de 50 segundos numa velocidade de 100km/h. Uau. Adrenalina pura para 100 pessoas por hora. Perguntei ao prefeito Eduardo Paes sua opinião: “Acho sensacional. Só tem ganho para a cidade”.

Eu me lembrei da ciclovia Leblon-Barra, na Av Niemeyer. Também era só ganho para os cariocas. Desabou, matou, e hoje só estão abertos 3,8 de seus 9 quilômetros de extensão. É injusto comparar? Acredito nas boas intenções de Paes. Uma tirolesa com aquela paisagem estonteante atrai turismo, coloca nosso querido Monumento Natural Cultural e Geológico Nacional e Internacional no mapa dos esportes radicais. Quais são as ressalvas? Além da segurança, a pergunta é: essa obra estrutural, que os empresários têm a pachorra de chamar de “restauro do morro”, é legal?

O artigo 17 do decreto-lei 25 de 1937 diz, entre outras coisas, que bens tombados não podem ser mutilados. E o Pão de Açúcar está, sim, sendo mutilado. Além das rochas quebradas, há um estudo delirante de Índio da Costa, que não está incluído no projeto da tirolesa. É a construção de muitas plataformas para visitantes, saias rodadas de concreto, deformando o morro atual (imagem no fim do texto). O argumento é: vamos dar mais conforto aos turistas, vamos transformar toda a paisagem. Enquanto isso, ninguém – ninguém mesmo – consulta a comunidade dos moradores da Urca.

Levei netos recentemente ao Pão de Açúcar. Eu me deslumbrei mais uma vez no bondinho. Para eles, foi um sonho. Mas, para chegar e estacionar, no asfalto, foi um pesadelo. Aquele entorno da Urca não tem a menor condição de criar uma estrutura extra para adicionar turistas de tirolesa. Seria excelente melhorar o acesso atual. Só. O Brasil tem um péssimo hábito. Não há escuta. Os projetos mirabolantes atropelam, são surdos às comunidades afetadas. Muito diferente de países civilizados. Por que ignorar “the neighbourhood”?

A licença para a tirolesa foi dada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Entendo o prefeito, quando argumenta que a tirolesa foi submetida a quem regula o assunto. “Não sou especialista, não dou parecer técnico”, diz Paes. E ele está certo. Mas especialistas questionam e contestam o Iphan. Como a professora Lia Motta, servidora há mais de 40 anos do Iphan. Obra de restauro e conservação não tem nada a ver com autorização para mutilar um bem tombado. É um despiste. Um disfarce. Falta de transparência.

Escaladores filmaram o desmonte das rochas. O Iphan deu licença para esse desmonte? O Parque Bondinho Pão de Açúcar alega que sim, que tem licença para tudo ali, que nada é feito às escondidas, e por isso ninguém pode dizer que é “crime” quebrar rochas. Acontece que os institutos também podem errar. Ou todo mundo acha que as licenças dadas pelo governo do B. para cortar madeira na Amazônia eram aceitáveis, legítimas e morais? Licença não é sinônimo de legalidade.

Quando li que o Rio de Janeiro se arrisca a perder o título de patrimônio mundial da Unesco por conta da tirolesa, falei com Marlova Noleto. Admirável, ética, a primeira mulher a dirigir a organização no Brasil. Informalmente, ela me disse que a tirolesa é “um assunto super complexo”, subordinado ao centro de patrimônio mundial para América Latina. Fiz então quatro perguntas ao diretor do centro, Mauro Rosi. A essência da resposta confirmou meus temores. A Unesco também tateia no escuro. E por isso se coloca em cima do muro. Ou em cima do morro.

“Na ausência de dados completos do projeto e sem uma revisão técnica, não sou capaz, sinceramente, de comentar (a tirolesa) e afirmar se é compatível com o Valor Universal Excepcional do sítio (Pão de Açúcar). Não seria honesto da minha parte responder sem conhecimento suficiente de todos os elementos e sem análise técnica dos conselhos competentes (…). O processo está em andamento e esclarecimentos e soluções surgirão”, disse Rosi. E enquanto isso, a obra come solta.

Sou carioca da gema, de Copacabana. O Rio é uma paixão, meus olhos são de eterna turista enamorada. Como cidadã, não como jornalista, defendo que essa obra da tirolesa seja embargada imediatamente. Para ser analisada, às claras. Sem subterfúgios. Vamos informar direito a Unesco, o Paes, a população. É viável? A Urca aguenta o impacto? É legal? É perigosa? É danosa à imagem do Rio? À flora e à fauna? Essa tirolesa é necessária num Pão de Açúcar que já tem bondinho, rala-bunda e tantas atividades? Ou ela é “sensacional”?

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Manifestação da Sociedade Brasileira de Espeleologia

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Ofício GAE e Movimento PdA sem Tirolesa

GAE – Cia. do Caminho Aéreo x Pão de Açúcar – versão ampliada 

Manifesto da Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas

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