O Buraco do Lume e outros furos urbanísticos, de Leila Marques

Neste artigo, publicado originalmente no Diário do Rio, a Conselheira Federal do CAU/RJ, Leila Marques, fala sobre a polêmica da construção de um espigão no Buraco do Lume e do seu uso público consagrado há décadas.

“Abandonado por anos, o buraco testemunhou a evolução do desenho urbano à sua volta, e, seguindo os preceitos do nosso Código Civil (Art. 1.276), além da recente Lei 13.465/2017, que versam sobre o abandono de imóvel privado por parte de seu proprietário, o buraco foi tratado pelo poder público, investido um alto valor de recursos públicos, agregado à praça adjacente, dando-lhe um nobre uso social, e finalmente tombado em 2020, para não deixar possibilidades de reversão. Ledo engano.”

Urbe CaRioca

O Buraco do Lume e outros furos urbanísticos

Por Leila Marques – Diário do Rio

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Foto: Archdaily

Quando o ex-Secretário de Planejamento Urbano do Rio, Washington Fajardo, lançou o projeto Reviver Centro (2021), não era novidade que os centros históricos das principais capitais brasileiras haviam perdido a pujança dos gloriosos tempos pós revolução industrial, onde tudo girava em torno de seus imensos escritórios, com salas de todos os tipos, que foram se transformando, aos poucos, em escritórios reduzidos a uma direção enxuta, com muitos serviços sendo efetuados pelos próprios clientes, em suas casas, através da rede mundial de computadores. Os grandes e numerosos escritórios (tanto no setor público quanto privado), já vinham reduzindo a sua necessidade de ocupação de espaço físico, até que a pandemia da COVID-19 acelerou essa redução, com a implantação definitiva do sistema (também nada novo) do home office.

No caso do Rio de Janeiro, ainda temos mais um “vilão” para essa desocupação gradual do centro, que foi a mudança da capital federal na segunda metade do século passado para Brasília, mas essa é uma outra parte da história.

Essa constatação que os centros das capitais, exclusivamente de negócios e prestação de serviços, como no caso do Rio de Janeiro, onde a própria legislação coibia o uso residencial na maioria das ruas do bairro, estava transformando o local num cenário apocalíptico de abandono, de desperdício de espaço construído, e, consequentemente de degradação e insegurança, levou o então Secretário ao “ovo de Colombo”: mudar a forma de ocupação do bairro.

O projeto tinha como objetivo fundamental revitalizar a região, que já dispunha de infraestrutura básica, com a criação de moradias, a partir de reformas de prédios antigos de pouco ou nenhum uso, além da paralela requalificação urbana da área. Até aí, tudo certo.

Sabemos, porém, que planos urbanos, como qualquer outro ato normativo, não são capazes de realizar sozinhos ações de seu planejador original. Existem diversas instâncias de resistência às modificações, sejam de origem política, social ou econômica (ou todas juntas) que tornam um projeto aparentemente óbvio e salvador, em uma peleja infindável e polêmica.

Um dos primeiros impasses foi a suspeita de gentrificação do bairro. Contra isso, entretanto, o programa previa a implementação de projetos complementares, como o “programa de Locação Social” e regras para o “programa Moradia Assistida, que visava atender com moradia temporária pessoas em vulnerabilidade social“.

E essa seria sua grande diferença ao “projeto do Porto Maravilha” que, apostou alto em edifícios corporativos com subprevisão de infraestruturas urbanas que atendessem efetivamente ao setor da habitação. Outra diferença, é que o sucesso do Reviver Centro depende da ressurreição de prédios existentes, e não necessariamente da construção de novos prédios.

O projeto Reviver Centro tem se mostrado exitoso, mas cauteloso, com algumas dezenas de pedidos de licenças de obras para a região. Na verdade, o governo precisa investir mais e melhor no que lhe cabe, para ele deslanchar. A era em que reformar a cidade significava permitir a demolição de antigos prédios, desapropriação e construção ao extremo, já ficou no início do século XX. Ocupar vazios urbanos não pode mais significar adensar sobre oásis climáticos.

E é assim que chegamos ao caso urbanístico em cartaz na cidade: “o Buraco do Lume”. E, muito embora esse buraco não seja, necessariamente, o fundo do poço, há um lume, quem sabe uma luz, no fim desse acidente morfológico.

Para os esquecidos, recapitulamos, que o Buraco do Lume é tão somente um apelido, daqueles que os cariocas adoram dar a locais ou edificações que apresentam aspecto ou história bizarra. O buraco existia e ocupava quase toda a área de um terreno anexo à atual Praça Mario Lago, que, durante anos, permaneceu aguardando a longa trilha da justiça. Seu dono, empresário Lume, iniciou uma obra no local, mas teria falido antes mesmo de fazer as fundações.

Abandonado por anos, o buraco testemunhou a evolução do desenho urbano à sua volta, e, seguindo os preceitos do nosso Código Civil (Art. 1.276), além da recente Lei 13.465/2017, que versam sobre o abandono de imóvel privado por parte de seu proprietário, o buraco foi tratado pelo poder público, investido um alto valor de recursos públicos, agregado à praça adjacente, dando-lhe um nobre uso social, e finalmente tombado em 2020, para não deixar possibilidades de reversão. Ledo engano.

Conforme versa o famoso dito popular: “o buraco é mais embaixo”. Trocadilhos à parte, o tombamento da praça, que incluía em anexo, o terreno do buraco, e que vem sendo usado legitimamente pelo povo há décadas, teve seu tombamento revogado, em 2022, pela proposta de um nobre deputado, vislumbrando o valor imobiliário da construção de mais um espigão ali no centro, cujas legislações edilícias estão cada vez mais flexíveis diante das várias edições da Lei dos Puxadinhos (mais um apelido carioca).

Não está confuso; você só não está acreditando no que já entendeu. Vamos de novo:

Durante décadas, um terreno é deixado ao abandono; o poder público faz a sua parte, encampando para si o ônus de cuidar de um buraco e urbanizá-lo, entrega o espaço a um novo desenho urbano que lhe dá o uso de uma praça pública, arborizada e, justo agora, quando aquecimento global é a temática planetária, o mesmo poder público resolve aprovar uma espécie de “desapropriação” dessa praça (boa parte dela), para construir mais um espigão? Assim fica mais difícil reviver o centro.

Manter e aprimorar essa e outras praças é a parte que cabe ao governo para que o centro saia do CTI e sobreviva aos novos tempos. Criar um prédio novo no local que já foi o “buraco”, é a maior furada (mais trocadilhos inevitáveis) social, ambiental, paisagística e até urbanística. Incentivar o retrofit das dezenas de prédios em semiabandono era o que pedia essencialmente o projeto original.

O lume no fim desse túnel, dando a segurança jurídica necessária, talvez seja a aprovação do pedido de novo tombamento, que incansáveis profissionais ligados ao urbanismo estão pleiteando junto ao INEPAC (órgão de patrimônio estadual).

E para aqueles que defendem a ideia da “desapropriação” do povo, ante o usufruto da praça, para a construção do prédio, sob o frágil argumento que o terreno em questão não era parte da dita praça, aceitemos: não era mesmo, antes de se tornar o “Buraco do Lume”. Porém, há anos esse espaço está incorporado à praça pelo povo. E como praça, este terreno foi, é e sempre deverá ser, do POVO!

*Leila Marques é conselheira federal do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro (CAU/RJ) e do Climate Reality Leadership Corps.

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