Publicado no jornal “O Globo”, edição desta segunda-feira, artigo do arquiteto Sérgio Malhães. Vale a leitura !
Urbe CaRioca
O vale-tudo é a regra
Sob o ponto de vista das cidades, os movimentos de junho de 2013 terão sido inexistentes?
Por Sérgio Magalhães – O Globo
Decorridos dez anos dos movimentos de junho de 2013, busca-se avaliar suas consequências na política e na vida nacionais. Nesta década, o país viveu uma Copa, uma Olimpíada, uma Lava-Jato, uma pandemia e uma sucessão de turbilhões na política, inclusive tentativa de golpe de Estado. A economia brasileira despencou: o PIB caiu 25% (entre 2013-2019, sem pandemia), a renda per capita caiu 28%. E as cidades, foco dos movimentos, como ficaram?
No calor das manifestações, a então presidente da República propôs um pacto nacional para melhorar a qualidade de vida urbana com quatro metas, entre as quais privilegiar o transporte coletivo e tornar as instituições mais resistentes aos “malfeitos”.
Na ocasião, o Instituto de Arquitetos do Brasil, com diversas entidades da arquitetura e do urbanismo, promovia uma série de seminários em todas as regiões do país para debater a questão urbana e o direito à cidade. Comemorava-se o cinquentenário do histórico Seminário de Habitação e Reforma Urbana, realizado em 1963, no Quitandinha, Petrópolis, onde a expressão “reforma urbana” fora cunhada.
Propuseram ao debate uma agenda relacionada à arquitetura e ao urbanismo. Nela se incluíam, quanto à mobilidade, privilegiar o transporte público de alta capacidade (metrô e trens urbanos) e melhorar o espaço público para pedestres. Quanto à habitação, investir na urbanização de assentamentos populares, na universalização de crédito imobiliário e na assistência técnica para melhoria das moradias precárias. Quanto à resistência a ‘malfeitos’, licitar obras públicas somente a partir de projeto completo.
Nestes dez anos vimos retrocessos não apenas na economia. Embora as manifestações de junho de 2013 tenham se caracterizado como movimentos que pleiteavam maior qualidade de vida urbana, o tema continuou ausente das preocupações nacionais.
Recursos para a urbanização das áreas populares inexistiram. Enquanto o povo brasileiro, estima-se, construiu 15 milhões de novas moradias, menos de 3 milhões tiveram algum tipo de financiamento. Ampliou-se a irregularidade e a precariedade.
Aumentaram os tempos de viagens metropolitanas; concessionárias de serviço público de transporte abandonam os contratos; em contrapartida, subsidiam-se gasolina, ônibus obsoletos e automóveis.
Desde 2015, as obras públicas podem ser licitadas sem projeto. A construtora contratada fica encarregada de definir o que construirá. Preços e prazos ampliados, qualidade reduzida são o resultado dessa política. Como ela se ajusta ao interesse de evitar sobrepreços e “malfeitos”?
Em tempo de legislar sobre novos planos diretores urbanos, em São Paulo insiste-se na verticalização em áreas mal servidas de transporte; no Rio, abrem-se as porteiras para aprovar obras fora da lei, desde que se pague algo à prefeitura. Em ambos os casos, desmoraliza-se a participação cidadã para definir as leis.
As cidades brasileiras estão entregues à própria sorte. O Estado, em suas três instâncias, tem exacerbado sua inapetência em cumprir suas responsabilidades quanto à garantia da vigência da Constituição em todo o seu território. Parcelas crescentes das cidades estão sob jugo bandido, com suas populações sem proteção constitucional. Parecem ignorar que aí está a principal causa da violência urbana que abafa a possibilidade de desenvolvimento da cidade, do estado e do país. Em sucessivos mandatos, o quadro só se agrava.
O vale-tudo é a regra, que trai a democracia, desmoraliza a política, imobiliza o cidadão, abafa energias criadoras, amarra o país ao passado e inviabiliza o futuro. Enquanto o mundo busca uma atenção ao planeta, ante a crise ambiental, o Brasil não tem nada a dizer sobre seu sistema urbano? Sob o ponto de vista das cidades, os movimentos de junho de 2013 terão sido inexistentes?
*Sérgio Magalhães é arquiteto