Uma louvável iniciativa que conseguiu unir com força simbólica e beleza concreta o passado e o futuro de uma cidade. Assim pode ser definida a restauração do casarão histórico número 28 da Rua do Ouvidor, no Centro do Rio. Trata-se de um verdadeiro espetáculo de cultura, arte e cidadania na região, reflexo da dedicação das equipes de restauradores, arquitetos e operários, que diariamente enfrentam o tempo e a história armados com bisturis, pincéis e moldes; um exemplo raro de respeito à memória urbana e ao patrimônio coletivo.
A iniciativa — impulsionada pelo programa Proapac Patrimônio da Prefeitura e abraçada com coragem por investidores privados — transcende o simples ato de recuperar uma edificação. Ela revela um compromisso com a identidade carioca, valorizando uma arquitetura riquíssima que resiste ao tempo e à negligência. A cada ornamento reconstruído, a cada camada de tinta delicadamente removida, reergue-se também o orgulho de uma cidade que insiste em renascer, mesmo onde antes havia ruína e abandono. Em meio às dificuldades que desafiam o Centro Histórico, o que se vê ali é um sopro de esperança e beleza — e uma aula pública sobre a importância de preservar a alma de uma cidade.
Urbe CaRioca
Restauração de casarão histórico na rua do Ouvidor é verdadeiro espetáculo de cultura e arte no Centro
Diário do Rio – Link original

A atuação dos profissionais de restauro que trabalham todos os dias no local chama a atenção de passantes: a prospecção de cores e detalhes originais é uma verdadeira caça ao tesouro perdido, enquanto o árduo trabalho de confecção de detalhes da fachada é uma verdadeira volta ao tempo em que os pedreiros eram verdadeiros artesãos
Muito tem se falado nos efeitos do projeto Reviver Centro, e nas consequências de seu mais novo desdobramento, o Proapac Patrimônio, através do qual a Prefeitura desapropria imóveis caindo aos pedaços no Centro Histórico, lançando-os em leilões em que seus arrematantes receberão subsídios municipais para reconfigurar os lindos sobrados que – quando em bom estado – nos aproximam da beleza das capitais européias. A maioria dos investidores imobiliários morre de medo de restaurar prédios antigos, temendo a burocracia dos órgãos de patrimônio, os altos custos deste trabalho e a dificuldade de mão de obra especializada. Isso, sem contar os desafios que enfrenta o Centro Histórico.
Numa região que simplesmente mudou de cara – santa coincidência ou não – após o restauro da Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores, são inúmeros os novos negócios surgindo no entroncamento entre as ruas do Mercado, dos Mercadores, do Ouvidor e Rosário. E quem passa por ali não consegue deixar de perceber os homens de jaleco branco trabalhando diariamente, de sol a sol, no restauro do antigo restaurante Geraes, na rua do Ouvidor número 28, que se encontra todo envolto por andaimes. O prédio, do final do século XIX, pertencia há 300 anos à histórica Irmandade da Santa Cruz dos Militares e foi comprado recentemente por investidores que, após obter a licença do Iphan e do IRPH, contrataram a empresa Engearq para executar o restauro de sua fachada, uma das mais detalhadas e interessantes de todo o Centro.
“A restauração deste icônico casarão, abrange as mais diversas técnicas de prospecção de cor e desenhos, dado o grande nível de intervenções e deterioração que sofreu ao longo do tempo. Também fazemos a moldagem in loco, dos mais diversos adornos (ornatos), volumes, frisos, os quais transformam a fachada desta edificação numa verdadeira obra de arte”, explica ao DIÁRIO o engenheiro Gabriel Nascimento, encarregado da obra pela Engearq. Depois de discorrer sobre o trabalho artístico que está sendo realizado no sobrado que vai abrigar o Museu do Café, Gabriel explica que há 5 restauradores trabalhando diariamente no casarão que tem vista frontal pro histórico relógio da Igrejinha dos Mercadores, capela elíptica considerada uma caixinha de jóias, e restaurada por iniciativa da Sergio Castro Imóveis, do Shopping Paço do Ouvidor e do DIÁRIO DO RIO, em 2023.
O telhado do prédio de 700m2, todo em telhas de Marselha de barro, já foi totalmente restaurado no início do ano. Ele tinha diversos problemas no madeiramento, além de suas calhas terem sido arrancadas, durante a pandemia, por consumidores de drogas da região. A destruição das calhas acabou ocasionando imensos vazamentos que destruíram toda a fachada e também a parte de dentro do imóvel, que agora estão sendo reconstruídas, enquanto é feito o detalhado restauro da fachada pela equipe da Engearq.
Liderados pelo artista plástico especializado em restauro Alex Pitanga, a equipe de artífices trabalha com a moldagem dos ornatos – afrescos em alto relevo em formatos de flores, estrelinhas e outros bonitos símbolos – dentro do próprio imóvel. São criados moldes e formas em material plástico, com o uso de ferramentas de grande precisão, e com argamassa de cal são preparados os detalhes, um a um. No tratamento especializado das paredes externas, as várias camadas de massa e tinta são retiradas delicadamente com o uso de afiados bisturis, o que vem ressaltando grandemente a beleza da fachada, que é extremamente detalhada, além de extensa, pois se estende não só pela rua do Ouvidor como pela bucólica Travessa dos Mercadores. Um pincel é utilizado para varrer cada pequena área que acaba de ser descarregada com os bisturis.

Destruído quando da revolta da armada, em 1893, o prédio foi reconstruído no lindo estilo da ‘Belle Époque’, e sua fachada será uma atração na rua do Ouvidor / Acima, retirado do processo interno do Iphan, o esquema de como ficará especialmente bonito o prédio, que tem lindas sacadas e pelo trabalho em ferro fundido, além de 29 portas e janelas / Foto: Processo SEI do Iphan
O edifício tem três andares e o primeiro andar é inteiro formado de blocos de pedra esculpidos, pedras tão espessas que podem ser vistas inclusive da parte de dentro do bonito sobrado. O contraste entre a bonita pedra, os detalhes em ferro fundido trabalhado e a fachada em massa com centenas de ornatos, bits, detalhes e frisos tornam a beleza do prédio verdadeiro destaque na região. O trabalho dos restauradores foi capaz de descobrir no local a tinta original que pintava o imenso sobradão de 39 portas e janelas: ele ostentava originalmente as cores ocre (uma espécie de amarelo) e verde.
O projeto de restauro do imóvel é da arquiteta Patrícia Fendt, do escritório de arquitetura Desenho Brasileiro, companheira do urbanista Washington Fajardo, um dos maiores entusiastas do Centro do Rio. “Recuperar um edifício de tamanha importância para a cidade é um desafio gratificante. Cada detalhe do processo de restauração de suas fachadas está sendo conduzido com extremo rigor técnico, respeitando cada elemento original preservado”, explica Patrícia, que atua também na adequação de dois sobrados junto à Escadasia do Selaron, um no Largo do Guimarães e pelo menos mais três nas imediações da Travessa do Comércio e do Arco do Teles. “Diversos ornamentos precisaram ser refeitos a partir de moldes do que restava íntegro. Para isso, o uso da tecnologia foi fundamental: para garantir a máxima precisão na identificação de danos e na recomposição dos ornamentos, foram realizadas ortofotos detalhadas a partir de imagens captadas por drone. Esse mapeamento minucioso permitiu o registro fiel de cada elemento. Além disso, as sucessivas camadas de tintas que foram sendo aplicadas ao longo do tempo acabaram protegendo a cor original que se revelou durante a obra”, comemora a arquiteta, que cita a evolução da divisão interna do casarão, num perfeito casamento entre a revitalização da cidade e as novas necessidades que o prédio atenderá para manter sua utilidade econômico. “As mudanças internas e de uso foram fundamentais para que o edifício se mantenha vivo para a cidade e com isso contribua para a renovação da área central que todos esperam”.
O prédio tem uma incrível interligação com a história do Rio de Janeiro: foi adquirido – sua escritura de 2022 cita textualmente – originalmente de “Francisco Távora, do Conselho de Sua Majestade, Governador e Capitão General da Capitania do Rio de Janeiro“, numa data bem distante: 3 de outubro de 1721, antes de ser construída a sua célebre vizinha, a Capelinha de Nossa Senhora da Lapa.
Os profissionais Marlon Fernandes, Alex Sandro Oliveira e Ângelo Ramos tem sido vistos pelos passantes da rua do Ouvidor como verdadeiros artistas, liderados por Pitanga no incessante trabalho de recuperação do prédio que inicialmente abrigou a firma Soares Pereira & Cia Ltda. Sempre com seus jalecos, luvas e bisturis, vão recuperando pouco a pouco a história do prédio, encontrando segredos há muitos anos escondidos, como a cor verde no entorno das janelas, descoberta ao se abrir uma ‘janela de prospecção’ na fachada do prédio que tem vista tão privilegiada para o relógio da igrejinha, que voltou a funcionar em 2024 após 101 anos parado. O árduo trabalho dos restauradores coloca grande foco na capacidade dos artífices e operários que trabalharam originalmente na construção do prédio: “reproduzir o bonito trabalho que constituiu esta edificação, mesmo com a aparelhagem moderna disponível nos tempos de hoje, é trabalhoso. Agora, imagine fazer isso na época”, explica Adriano Nascimento, gerente da empresa Reg, que é dona do prédio.