Sempre o Gabarito – além da Urbe CaRioca

A verticalização das capitais brasileiras foi assunto de uma série de reportagens há alguns anos no jornal O Globo. O tema volta à pauta devido a um projeto polêmico a ser executado na cidade de Salvador.

Uma curiosidade que a reportagem traz trata de obras milionárias executadas por governos de cidades situadas na orla marítima para alargamento das faixas de areia como tentativa de driblar o sombreado causado pelos edifícios muito altos. Seria melhor manter índices construtivos adequados para resguardar as praias e proteger as paisagens natural e urbana.

Urbe CaRioca

Projeto de arranha-céus em Salvador gera controvérsia por sombra e é mais um caso a parar nos tribunais; entenda

Projeção de sombras que incidirim sobre Praia do Buracão caso sejam construídas as três torres planejadas pela Novonor (antiga Odebrecht) no Rio Vermelho, em Salvador; doutora em química contra o projeto alerta para o risco às correntes marítimas e à ventilação da cidade — Foto: Ilustração do arquiteto Daniel Pessoa a partir de detalhes do projeto/Movimento SOS Buracão

Além de espantar banhistas, verticalização leva ao avanço do mar sobre calçadões, o que já exigiu obras de alargamento das faixas de areia em cidades como Fortaleza e Balneário Camboriú

Por Lucas Altino e Luis Felipe Azevedo – O Globo

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O projeto de construção de três arranha-céus na Praia do Buracão, no Rio Vermelho, despertou o temor de ambientalistas e do Ministério do Público de que surja em um dos bairros mais famosos de Salvador o mesmo problema de outras cidades do litoral: a sombra dos grandes prédios na faixa de areia. Além de espantar os banhistas, a verticalização leva ao avanço do mar sobre calçadões, o que já exigiu obras de alargamento das faixas de areia em cidades como Fortaleza e Balneário Camboriú (SC). Nos últimos anos, a Justiça vetou a construção de espigões nas orlas de Santa Catarina e Espírito Santo.

Em novembro do ano passado, o prefeito de Salvador, Bruno Reis (União Brasil), afirmou que se o projeto no Rio Vermelho “cumprir as exigências legais” não será vetado. Mas no início deste mês, o Ministério Público da Bahia recomendou à Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Urbanismo do município que não autorize a construção de qualquer empreendimento na orla sem que seja analisado um estudo ambiental de sombreamento. A recomendação aponta que os prédios mudariam substancialmente a configuração original da praia e seriam uma “afronta à legislação urbanística e ambiental”.

O projeto prevê a construção de três edifícios com 15 e 16 andares pela OR Incorporadora, do Grupo Novonor (antigo Odebrecht). O GLOBO procurou a empreiteira e a Prefeitura de Salvador para saber detalhes da obra, mas não teve retorno.

Os prédios foram projetados para duas áreas adquiridas por R$ 16 milhões em junho e setembro de 2022, onde atualmente estão três casas abandonadas. As informações estão em documentos de cartórios obtidos pela SOS Buracão, organização formada por moradores do Rio Vermelho que se opõem às construções. Líder do movimento, o economista Miguel Sehbe diz que as informações sobre o projeto não eram transparentes.

— O que está havendo é um abuso imobiliário.

Além do prejuízo ao lazer, a integrante do SOS Buracão e doutora em química do mar Socorro Colen aponta que os novos empreendimentos provocariam problemas de trânsito e a sombra maior interfere nas correntes marítimas que contribuem para regular as temperaturas de Salvador.

— O vento será barrado e haverá o aumento do calor — alerta Colen.

Nesta semana, uma audiência pública debateu pela quarta vez o projeto na Câmara dos Vereadores. A discussão foi convocada pelo presidente da Câmara, Carlos Muniz (PSDB), autor de um projeto de lei que declara utilidade pública das áreas onde os prédios podem ser construídos.

Começo em Copacabana

A verticalização das orlas no Brasil nasceu do modelo criado em Copacabana, explica Marcus Polette, oceanógrafo da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e que recentemente publicou um livro sobre a zona costeira de Santa Catarina, um dos estados que mais recebe arranha-céus no litoral. A partir da década de 1960, o calçadão à frente de grandes edifícios de elite foi adotado em outras cidades de praia, numa época em que as legislações ambiental e urbanística ainda eram incipientes no país.

Planos diretores só passaram a ser exigidos em 2006, de acordo com o Estatuto da Cidade. Mas, nessa época, muitos arranha-céus já haviam tomado o cenário. As prefeituras se tornaram favoráveis às liberações dos edifícios, conta Polette. As administrações municipais foram atraídas pela possibilidade de aumento de arrecadação através de outorgas onerosas — que permite a construção de edifícios mais altos que os inicialmente permitidos — e de impostos como o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e o Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI).

— Quanto mais edifício, melhor para as prefeituras, e o setor imobiliário se aproveitou para vender mais — explica o pesquisador, que destaca que o pagamento de tributos nem sempre levou aos investimentos urbanos necessários. — Medidas como investimentos em saneamento básico não foram tomadas.

Segundo o MapBiomas, o Brasil perdeu cerca de 15% do território ocupado por praias e dunas como resultado do avanço de cidades sobre o litoral entre 1985 e 2021. Polette afirma que os edifícios que ocuparam estas áreas foram construídos, em grande parte, em cima de áreas de dunas e de restinga, o que impacta a regulação da linha de costa.

— Há um processo constante de retirada e reposição de areia. Quando coloca um calçadão em cima, o mar quer areia e não tem mais. Então o mar avança e come a praia — detalha Polette.

Essa consequência explica a necessidade de obras de “engordamentos” de faixas de areia. As obras em Balneário Camboriú, que não possui limitação para altura de edifícios, começaram em 2021, para o alargamento de cerca de 50 metros da Praia Central. No ano passado, porém, após a conclusão do projeto de R$ 68 milhões, o mar voltou a avançar.

Doutora em conservação da natureza e professora da Univali, Rosemeri Marenzi acrescenta que o sombreamento compromete o desenvolvimento da vegetação de dunas e dificulta a desinfecção de bactérias na areia, como já mostraram análises microbiológicas.

Os tribunais passaram a barrar algumas construções nas costas. Em 2021, a Justiça Federal determinou que a prefeitura de Itajaí, no Litoral Norte de Santa Catarina, não aprove novos empreendimentos na Praia Brava que possam causar sombreamento sobre a vegetação de restinga e a faixa de areia.

No Espírito Santo, a Justiça Federal aprovou em 2022 uma medida que delimita regras para novos empreendimentos de Vila Velha: foi proibida a construção de prédios que façam sombra nas praias antes das 16h. Em 2023, a Justiça Federal determinou a paralisação das obras de dois arranha-céus na orla da Armação de Itapocorói, no município de Penha (SC), atendendo a um pedido da associação de moradores.

O avanço da sombra afeta até cidades vistas como exemplos de manutenção da praia. Em João Pessoa, onde a legislação estadual e municipal impedem grandes construções em faixa de até 500 metros a partir da linha de água da maré, o Ministério Público investiga três prédios que teriam sido construídos acima desse limite. Um quarto edifício, ainda em obras, também é investigado.

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