Neste artigo, publicado originalmente no no site “A Sociedade em Busca do seu Direito”, a professora e jurista Sonia Rabello aborda a questão do tombamento de bens públicos municipais e sua relação com áreas de proteção federal, fazendo uma profunda análise não apenas sobre a formalização jurídica desses tombamentos, mas também a importância da proteção integrada.
São destacados dois casos emblemáticos de bens tombados, alvos de mobilização popular no Rio de Janeiro e que envolvem as mutilações do Pão de Açúcar e do Jardim de Alah, ressaltando os impactos legais e sociais da preservação de espaços históricos e culturais, com ênfase na necessidade de coerência entre normas municipais e federais.
Urbe CaRioca
Tombamento: a desconstrução do instituto pelos órgãos de preservação?
Os casos das mutilações do Pão de Açúcar e do Jardim de Alah, no Rio
No Rio de Janeiro, dois casos significativos de projetos privados de intervenções em bens públicos tombados colocaram em xeque o entendimento, não só jurídico, mas também popular do que seja tombamento, e das obrigações dele decorrentes – de sua proteção e conservação -, tanto pela sociedade quanto pelo Poder Público.
Só lembrando que bem tombado é aquele declarado pelo poder público como um patrimônio cultural da sociedade, e que, por força do art. 216 da Constituição Federal, o Poder público e a sociedade têm o dever de preservar e proteger, como um direito fundamental. Sua lei de regência é o Decreto-lei nº 25 de 1937.
Os dois casos são de projetos de intervenção fisicamente mutilatórios dos bens tombados, no sentido literal da palavra, mas que os órgãos de patrimônio, o IPHAN e o órgão municipal de patrimônio da Cidade do Rio, não consideraram como tal. Vejamos.
No caso dos Penhascos Monumentais Pão de Açúcar e Morro da Urca, o projeto para pendurar e operar as quatro tirolesas requereu a perfuração, corte e amputação de blocos e mais blocos de rochas daqueles monumentos de pedra gnaisse, para neles viabilizar não só a fixação dos cabos, mas também construir toda a aparelhagem para sua operação, como rampas de acesso, aterrissagem, frenagem, e demais equipamentos de segurança e operação do equipamento esportivo voluptuário.
Este projeto foi proposto pela empresa que atualmente ocupa, por mera permissão da União Federal, as partes da cumieira dos morros do Pão de Açúcar e da Urca, que é uma Unidade de Conservação de Proteção Integral. A empresa também explora a condução de transporte público de acesso ao topo dos morros, mediante teleférico, que é uma concessão municipal de transporte público municipal, vencida desde 1999, e não renovada pela municipalidade. O projeto das tirolesas viabilizaria também, sem sabermos a que título jurídico, a exploração comercial do espaço aéreo entre os Penhascos Públicos Pão de Açúcar e Morro da Urca, acrescentando mais este elemento, bem no meio da paisagem icônica da Cidade, que é Patrimônio Mundial.
O outro caso é a construção de um shopping center horizontal de 18 mil metros quadrados de área útil e estacionamento, ocupando toda a área central do jardim público tombado. Hoje, esta área, denominada de Jardim de Alah, é inteiramente livre de quaisquer edificações e é por onde passa o canal natural de drenagem da Lagoa Rodrigo de Freitas.
O Jardim de Alah é uma enorme praça pública que, embora abandonado na sua manutenção pela Prefeitura desde a época que foi ocupado pela construção do metrô no local, ainda conserva todos os seus elementos paisagísticos que justificaram o seu tombamento municipal em 2001. [1]
A proposta de construção de prédios comerciais privados e permanentes no meio dos jardins do Jardim de Alah seccionará o bem tombado em duas partes, alterando sua altura, volume, composição, perfil, arborização, enfim, todo o seu projeto original, e retirando, nesta área, a sua funcionalidade de uso comum público do povo.
Este projeto decorreu de uma licitação da própria Prefeitura do Rio que, no bojo de concessão de uma PPP para uso e cessão do logradouro público/Jardim a uma empresa comercial para sua “manutenção e conservação”, estaria “pagando” estes serviços com a exploração e uso comercial privado de toda a área central dos jardins com lojas, restaurantes e estacionamento.
O que aproxima os dois casos, além de ocorrerem na mesma Cidade, e ao mesmo tempo, é a circunstância de ambos os projetos terem sido aprovados pelos respectivos órgãos de proteção e preservação dos bens culturais, sendo que o caso das tirolesas, o bem – Pão de Açúcar e Morro da Urca – por ser tombado tanto na esfera federal quanto municipal, teve o aceite tanto do IPHAN, quanto do IRPH, órgãos federal e municipal de “proteção” ao patrimônio cultural, respectivamente.
Já o Jardim de Alah é um bem público municipal, que teve seu tombamento municipal instituído pelo Decreto Municipal nº 20.300/2001, além de ser entorno do bem tombado a nível federal, a Lagoa Rodrigo de Freitas, que também tem a chancela de área especial de proteção do Patrimônio Mundial, tal como o Pão de Açúcar.
Também, em ambos os casos, a aprovação dos respectivos projetos pelos órgãos ditos de proteção do patrimônio cultural está sendo questionada na Justiça. A aprovação da tirolesa pelo Ministério Público Federal [2], e a aprovação do projeto de seccionamento do Jardim de Alah pelo Ministério Público do Estado do RJ [3], respectivamente na Justiça Federal e na Justiça Estadual.
Nos dois casos, o Ministério Público Federal e Estadual questionam a ilegalidade das aprovações, arguindo que as aprovações foram contra legem; isto porque nas aprovações dos projetos respectivos, os órgãos de proteção do patrimônio não explicitaram, com estudos técnicos e suficiência, as razões pelas quais entenderam que as impactantes alterações físicas, e a violação da integridade fática naqueles bens tombados, não se caracterizariam como mutilação, e, portanto, não se aplicaria, nas hipóteses, os termos da lei de regência do tombamento de bens culturais brasileiros – o Decreto-lei nº 25/37.
No bojo dos processos judiciais também se questiona se as decisões dos órgãos de proteção do patrimônio tombado poderiam ser reapreciadas em juízo. E a resposta é que sim, mormente quando estas apreciações são insuficientemente motivadas em face de eventual flagrante infração legal.
Os estudos técnicos, que deveriam sustentar a motivação do ato administrativo é, ou deveria ser, elemento central do ato administrativo, de modo a permitir o seu controle social, pela verificação da sua coerência e consistência, garantindo assim a integridade do sistema jurídico. Quando as decisões administrativas, em um suposto uso da discricionariedade, aparentam uma forte dissonância com sua lei regente, no caso com o Decreto-lei nº 25/37, não só o Ministério Público pode, como deve pedir ao Judiciário que aprecie a legalidade das aprovações, seja pelo ângulo da eventual infração direta ao preceito legal, seja pela insuficiência da motivação que justifique e explique por que a aparente infração à lei, não foi, faticamente, considerada existente.
E qual seria, em ambos os casos, a infração à lei?
Em ambos os casos se trata, do ponto de vista fático e objetivo, de mutilação física de bem tombado, o que é vedado, pelo art.17 do Decreto-lei nº 25, que, como dito, é a lei de regência de proteção do patrimônio cultural brasileiro, seja ele federal, estadual ou municipal.
E o que diz, textualmente, o art.17 do Decreto-lei nº 25/37?
Art. 17. As coisas tombadas não poderão, em caso nenhum ser destruídas, demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização especial do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ser reparadas, pintadas ou restauradas, sob pena de multa de cincoenta por cento do dano causado.
Em bom português: os órgãos de proteção ao patrimônio cultural não poderão, em nenhum caso, autorizar projetos que mutilem os bens do patrimônio cultural do povo. A competência destes órgãos é somente para apreciar e autorizar projetos que visem sua preservação, pela reparação, pintura ou restauração.
Lida a lei, assim era, até hoje, compreendido e aplicado, o sentido literal e direto da norma.
No caso dos Penhascos do Pão de Açúcar e Morro da Urca, o parecer da técnica que encaminhou a aprovação do projeto de instalação das tirolesas aceitou que, para instalação do equipamento de recreação (uma obra meramente voluptuária), houvesse perfuração, cortes, e amputações de blocos de rocha do Penhasco Monumento Natural; além de autorizar o vedado pela norma. Ainda assim não explicou, fundamentou, ou motivou como e porque ela entendia que estas amputações no corpo natural da rocha não seriam compreendidas como mutilações!
Após a estupefação pública desta autorização, a explicação institucional que passou a ser dada ao público em geral foi a de que estas amputações da rocha não seriam visíveis de longe, e/ou de que era “só um pouquinho” de rocha a ser amputado do enorme corpo do penhasco monumental!
Amputar e mutilar a integridade de um bem natural de proteção integral “só um pouquinho”? Pode? Ou mutilar um pouquinho não é mutilar? Então é necessário explicar esta nova versão da mutilação, não visível de longe, e que não será enquadrada mais como mutilação vedada pela lei, “em nenhum caso”.
A mesmíssima hipótese ocorreu no Jardim de Alah. Faticamente, é inegável, e até afirmado pelo arquiteto responsável pelo projeto perante o Juízo, em audiência, que a construção da edificação com 18 mil metros quadrados de área construída, e plotada na parte central do jardim, iria desfigurar, e fazer desaparecer nesta área, o projeto original e o próprio jardim na sua parte central, seccionando-o e, consequentemente, mutilando-o enquanto jardim, em seu corpo natural e contínuo.
Porém, embora a mutilação, destruição, e a desfiguração dos bens tombados sejam literalmente vedadas pelo art.17 da lei de regência destes bens, o projeto de seccionamento e desfiguração do jardim foi aprovado pelos órgãos de “proteção” do patrimônio cultural.
Ficou o povo sem explicação: agora pode mutilar bens tombados, desde que se consiga a aprovação dos órgãos que deviam proteger estes bens? Agora os órgãos de proteção podem aprovar intervenções contra a lei? Como se explica o entendimento da palavra mutilação? Há um outro sentido legal, diferente daquele do dicionário da língua portuguesa que diz, no Dicionário Aurélio [4]: “mutilar” significa privar de um membro ou parte do corpo, cortar ou decepar um membro, ou, figuradamente, causar dano ou estrago a algo. Também pode significar truncar, deturpar ou destruir parte de algo. Em resumo, “mutilar” tem dois significados principais:
1. Literal: Privar alguém ou si mesmo de um membro ou parte do corpo, seja por corte ou amputação.
2. Figurativo: Causar dano, estrago, truncar, deturpar ou destruir parte de algo”. (Google)
Por isso se recorreu ao Judiciário para que este aplique a lei, no caso, o Decreto-lei nº 25/37, reenquadrando os limites da ação e da competência dos atos do Poder Público, no seu poder/dever de proteção e preservação do patrimônio cultural.
O Judiciário, como sabemos, não pode intervir na modulação de como um bem tombado deve ser reparado, pintado e restaurado para continuidade de suas características. Entretanto, o Judiciário pode e deve intervir quando a compreensão do que seja restauração, preservação e proteção, passa a ser interpretada como mutilação, destruição e descaracterização do patrimônio cultural. Isto porque o Poder Executivo pode muito, mas não pode tudo – e os limites da sua ação estão fixados nas leis de regência. É o que a Constituição chama, em seu art. 37, de princípio da legalidade! E não precisa ser jurista, advogado ou juiz para entender algo tão simples assim. Aliás, o povo entende, e por isso está perplexo com estas ações/aprovações dos órgãos de “proteção” do patrimônio cultural. Nunca se viu, nas redes, apoio popular a favor da preservação de bens tombados, com 52.881 mil [5] e 30.245 mil [6] assinaturas, como nos casos do Pão de Açúcar e do Jardim de Alah, respectivamente
Ressalte-se que esta é a posição recomendada pela “I Jornada de Direito do Patrimônio Cultural e Natural” [7], que aconteceu no Superior Tribunal de Justiça, em 2023, coordenada pelo seu atual Presidente, o jurista Ministro Herman Benjamin. Depois de setenta e quatro anos de existência do Decreto-lei nº 25/37, um Tribunal Superior brasileiro editou, pelo Centro de Estudos da Justiça Federal, enunciados sobre o Direito à Preservação do Patrimônio Cultural, que a Constituição de 1988 dispôs, e o STF reconheceu como um Direito Fundamental.
Dentre esses enunciados destacamos os seguintes, que entendemos contrariados, frontalmente, pelas aprovações das Tirolesas nos Penhasco Monumentais do Pão de Açúcar e Morro da Urca, e pela aprovação de um prédio de 18 mil metros quadrados para construção de um shopping comercial na praça central do Jardim de Alah, logradouro público tombado de uso comum do povo.
“ENUNCIADO 5 – O ordenamento brasileiro a ninguém garante direito ou expectativa de direito de – direta ou indiretamente – destruir, inviabilizar, danificar, alterar ou comprometer o patrimônio cultural, monumental ou não, tampouco a degradação com usos incompatíveis com a natureza do bem ou a ratio original de sua proteção.
ENUNCIADO 6 – Incumbe ao Poder Judiciário – por meio de medidas precatórias, preventivas, reparatórias e repressivas, bem como do poder geral de cautela – assegurar a integridade do patrimônio cultural/natura, l material ou imaterial, com base na função memorativa da propriedade cultural.
ENUNCIADO 9 – Integram a estrutura básica da ordem pública de proteção do patrimônio cultural e natural, entre outros, os princípios da vedação de salvaguarda deficiente; in dubio pro patrimônio público; da proibição do retrocesso cultural e/ou ambiental; da função memorativa da propriedade cultural; da prevenção de dano; da precaução; da responsabilização in integrum; da solidariedade intergeracional; da cooperação internacional; da participação pública; da função ecossocial da propriedade; da fruição coletiva; e do respeito à ancestralidade e à diversidade
EXEGESE DOS VOCÁBULOS “DESTRUIR” E “DEMOLIR”
ENUNCIADO 29 – No Decreto-Lei n. 25/1937, os termos “destruir” e “demolir” devem ser empregados em sentido amplo para alcançar, também, as ações de “estragar”, “reduzir as qualidades características”, “afetar negativamente de maneira substancial”, “inviabilizar ou comprometer as suas funções”, “afastar- se da concepção original”, “violar ou contradizer a ratio da tutela do bem cultural“.(grifamos)
Aliás, estes e outros enunciados da “I Jornada de Direito do Patrimônio Cultural e Natural” traduzem, de forma atualizada e completa, o preconizado no voto do Ministro Herman Benjamin, no REsp. 808.708-RJ (2006/0006072-8) [8], no qual vale destacar seus fundamentos, que diz o seguinte sobre a inteligência do art.17 do Decreto-lei 25/37:
“Nesses conjuntos, os termos “mutilar” e “destruir”, utilizados pelo art. 17 do Decreto-Lei n. 25/1937, não têm apenas o sentido estrito de salvaguarda de edifícios e construções isolados, mas também de proteção da globalidade histórica, arquitetônica e urbanístico-paisagística, isto é, dos bens agregados em universalidade de direito. Trata-se de preservar, a um só tempo, o todo a partir dos seus elementos e estes a partir daquele. Assim, o Decreto-Lei n. 25/1937 veda e reprime tanto a destruição, demolição e mutilação total como a parcial; tanto a comissiva como a omissiva; a que atinge as bases materiais, como a que afeta os aspectos imateriais do bem. Nele, “destruir” e “demolir” são empregados em sentido mais amplo que na linguagem coloquial, pois não se resumem a “derrubar” ou “pôr no chão”. “Destruir” inclui modalidades mais tênues e discretas de intervenção no bem tombado ou protegido, como “estragar”, “reduzir as suas qualidades”, “afetar negativamente de maneira substancial”, “inviabilizar ou comprometer as suas funções” e “afastar-se da concepção original”. Igual sucede com o verbo “mutilar”, que no seu significado técnico-jurídico traduz-se em “cortar” ou “retalhar”, e também abarca “causar estrago menor”, “alterar fração”, “modificar topicamente” ou “deteriorar”. (…) Definitivamente, não há como proteger o Jardim Botânico do Rio de Janeiro sem assegurar, de maneira firme, o espaço físico que ocupa. Nas palavras do professor J. H. Merryman, “o ingrediente essencial de qualquer política de propriedade cultural é que o objeto em si mesmo seja fisicamente preservado. Este ponto é óbvio demais para demandar maior esclarecimento” (The public interest in cultural property, in California Law Review, vol. 77, 1989, p. 355)”
Busca-se, no Judiciário, não só a volta da legalidade dos atos administrativos de proteção do patrimônio cultural, como também da compreensão do que seja a moralidade de suas ações, outro princípio constitucional previsto no art.37 da Constituição Federal. E moralidade é coerência, razoabilidade, pertinência, leitura não distorcida da lei.
Ainda que seja duro, para os fragilizados órgãos de preservação reconhecerem seus equívocos, e voltarem atrás nas aprovações contra legem, este passo é essencial para que não se desmoralize o instituto do tombamento pela sua desconstrução, seja para atender aos encantos de discursos políticos, seja para “prestigiar” pareceres institucionais equivocados. É mais altaneiro e mais corajoso fazer a autocorreção. É isso que enobrece as instituições, e as fazem ser não instituições de governo, mas instituições de Estado, e que justificam a estabilidade do servidor público.
E só assim, pela aplicação do que está escrito no texto legal, e que o povo compreende e lê na lei, é que a sociedade continuará e ampliará seu apoio às difíceis e duras políticas de preservação do patrimônio cultural brasileiro.
Notas:
[1] Decreto Municipal 20.300 de 2001. https://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4722991/4121999/186DECRETO20300APACLeblon.pdf
[2] Ação Civil Pública: Processo nº 5062735-09.2023.4.02.5101/RJ. Justiça Federal RJ
[3] Ação Civil Pública: Processo nº 0840633-75.2024.8.19.0001 TJRJ
[4] Dicionário Aurélio https://www.aulete.com.br/mutilar
[5] https://www.change.org/p/diga-n%C3%A3o-%C3%A0-tirolesa-no-p%C3%A3o-de-a%C3%A7%C3%BAcar
[8] Ver RSTJ – 239, tomo 2, pags. 71 e segs.
Obrigado pelas considerações e esclarecimentos, Sônia.
O fundamentalismo do capital gera resultados semelhantes ao fundamentalismo religioso que destrói patrimônios com base em sua fé distorcida.