Um exercício urbano-carioca,
uma fábula do Século XX,
uma realidade no Século XXI.
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Imagem criada sobre foto do Google Maps |
Os projetos das avenidas que contornam a Lagoa Rodrigo de Freitas foram definidos nos anos 1920 pelo plano de “saneamento e embelezamento da Lagoa (…) construindo parte da Avenida Epitácio Pessoa e Canal de Visconde de Albuquerque, e Canal da Lagoa*”, na gestão do prefeito Carlos Sampaio**. A conformação atual é praticamente igual à dos desenhos de então.
Os aterros que reduziram expressivamente o tamanho original do espelho d’água, as ruas que circundam o que hoje é um bem cultural tombado – um símbolo do Rio em forma de coração –, e outras vias do tecido urbano edificável dos bairros de Ipanema, Leblon, Lagoa e Jardim Botânico – foram executados ao longo de várias administrações. Quanto à Av. Epitácio Pessoa, “o início e o avanço da mesma foram de tal ordem que se impunha pelas administrações sucessivas”, como consta em O Rio de Janeiro e seus Prefeitos*. De fato, gestores que viriam a comandar a cidade completaram o projeto de 1922.
A área pública da orla foi construída gradativamente por vários prefeitos. O último terreno incorporado a ela é o atual Parque dos Patins, espaço cedido a um parque de diversões durante mais de duas décadas, resgatado para a cidade em 1993. Com exceção dos trechos ocupados por uma academia de ginástica, áreas de uso governamental, e um questionável conjunto de cinemas, a orla da Lagoa Rodrigo de Freitas é de uso livre. É possível circundá-la pelas avenidas – com os devidos meios de transporte –– ou a pé e de bicicleta, pelo parque. Os espaços são de todos.
Poderia não ter sido assim.
Digamos que, em vez de executar os projetos estabelecidos em administrações anteriores, um gestor nomeado em meados dos anos 1960 houvesse criado condições especiais para a construção de um Campo de Golfe particular às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, Zona Sul do Rio, modificando o projeto do colega que comandou o então Distrito Federal, Carlos Sampaio; digamos que existisse um enorme terreno vazio entre as ruas Jardim Botânico, J. J. Seabra, General Garzon e a beira da Lagoa; que neste local Av. Borges de Medeiros fosse ainda projetada, isto é, que a avenida estivesse quase concluída, faltando construir apenas um trecho entre as ruas J. J. Seabra e General Garzon; e também que na parte do terreno mais próxima da água lagoa existisse uma faixa de manguezais protegidos pelas leis de meio ambiente destinados a integrar uma Área de Proteção Ambiental, onde era proibido construir.
Digamos ainda que o proprietário decidisse erguer um conjunto de 40 prédios de 5 andares na parte edificável do imóvel descrito, perto da rua Jardim Botânico. Em obediência às leis vigentes, o terreno correspondente à avenida e aos manguezais seria doado ao município, e a via construída pelo empreendedor. Somente nessas condições a obra dos edifícios seria licenciada.
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Porém, o gestor quis mudar o projeto do colega que comandou o então Distrito Federal** para incentivar a construção de um campo de golfe dito benéfico para o Rio, cuja real necessidade jamais foi esclarecida. O proprietário, por sua vez, interessou-se pela ideia. Era um bom negócio, um jogo win-win. Mas, havia que afastar alguns empecilhos.
Para completar a manobra, o alcaide:
· Cancelou o desenho da Avenida Borges de Medeiros entre as ruas J. J. Seabra e General Garzon → para construir edifícios no terreno o proprietário não precisaria mais doar e executar a avenida;
· Como na parte do terreno destinada ao campo de golfe não seria mais possível erguer 20 dos 40 prédios previstos, o prefeito e seus vereadores permitiram que perto da Rua Jardim Botânico o gabarito passasse de 5 para 10 andares → em vez de 40 edifícios com 5 andares, 20 prédios com 10 andares;
· Uma parte da área dos manguezais e da avenida projetada pertencente a um imóvel vizinho já havia sido doada ao antigo Estado da Guanabara → o prefeito e seus vereadores cancelaram a doação e a incorporaram ao futuro Campo de Golfe;
· Mesmo assim seria impossível construir o Campo até à margem da Lagoa Rodrigo de Freitas sobre os manguezais intocáveis → o prefeito e seus vereadores cancelam a tutela ambiental, eliminaram a área verde pública, e interromperam a APA da Zona Sul;
· Quanto aos apelos da sociedade civil organizada, o gestor os ignorou; de nada adiantou lutar pela permanência de um parque público e da área verde protegida às margens da Lagoa, para que a mesma fosse livremente usufruída por toda a população → foi ao Rádio televisão e deu explicações nada convincentes.
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Assim, quase meio século após a aprovação do desenho da Avenida Borges de Medeiros, ela não foi concluída. Faltou um pedaço. Um passeio margeando um dos cartões-postais do Rio vindo de Botafogo em direção ao Leblon esbarraria em um muro divisório na altura da Rua J. J. Seabra. Carros, ônibus, bicicletas e pedestres deveriam seguir até a Rua Jardim Botânico, contornar o campo e voltar pela Rua General Garzon para chegar novamente à Lagoa. Até as capivaras que às vezes apareciam por lá, estariam impedidas de passear livremente pelo seu habitat.
Felizmente, isto é apenas uma fábula do século XXI sobre um gestor do século XX que nunca existiu. A orla da Lagoa Rodrigo de Freitas já é quase totalmente livre. Falta pouco: retirar o que sobrou da academia de luxo; criar a prometida área de esportes radicais; talvez um dia saia de lá o heliporto que causa tantos transtornos.
O assunto é complexo. Para melhor visualizar, basta mudar algumas palavras desta fábula, seguir a figura acima, e trazer a estória para o ano de 2013, substituindo:
· O terreno entre a Rua Jardim Botânico e a margem da Lagoa da Zona Sul pelo terreno situado entre as avenidas das Américas, Mário Fernandes Guedes, Otávio Dupont, e a margem da Lagoa de Marapendi;
· A Av. Borges de Medeiros por Av. Prefeito Dulcídio Cardoso, a antiga Via 2 do Plano Piloto para a Baixada de Jacarepaguá;
· Os manguezais pela Zona de Proteção da Vida Silvestre da APA Marapendi e pelo Parque Municipal Ecológico de Marapendi;
· Os gabaritos transferidos, a desobrigação de doar áreas de recuo e de construir o que falta da via da Zona Sul, pelas benesses concedidas pela Lei Complementar nº 125 de 14/01/2013 e pelo Decreto nº 36795 de 20/02/2013 – O Decreto Discreto – para o terreno que se estende da Av. das Américas até à margem norte da Lagoa de Marapendi.
Se a Rodrigo de Freitas e seus manguezais foram preservados porque aquele prefeito biônico não existiu, a julgar pela foto ao lado, o caso do famigerado Campo de Golfe na Barra da Tijuca, nada democrático, é causa perdida.
Fica o registro de um dos vários desmandos urbanísticos do início do Século XXI que desrespeita um traçado urbano importante – possivelmente um dos poucos aspectos interessantes do Plano Piloto -, privilegia o interesse particular em detrimento do interesse público, interrompe a Área de Proteção Ambiental Marapendi, concebida há mais de meio século, e impede que o carioca usufrua a orla da Lagoa Marapendi em sua totalidade.
Cabe indagar se a beira d’água será cercada por um muro.
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A DECEPÇÃO DAS CAPIVARAS Blog Urbe CaRioca |
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NOTAS
1 – *O Rio de Janeiro e seus Prefeitos, Volume 1 ( publicação da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1977); o Canal da Lagoa é o que atravessa o Jardim de Alah; inicialmente todo o contorno da Lagoa foi denominado Avenida Epitácio Pessoa; posteriormente a parte que limita com os bairros do Jardim Botânico e Leblon passou a chamar-se Avenida Borges de Medeiros.
2 – **Carlos Sampaio – Prefeito do Distrito Federal de 08/08/1920 a 15/11/1922
3 – Posts anteriores sobre o caso do Campo de Golfe
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Muito bom! Parabens! ����
Excelente!!
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