Vinte e Oito de Julho – Independência e Saliência, de Chico Fonseca

Capitão Thomas Cochrane, marquês do Maranhão

São Luís, julho de 1823. Na madrugada do dia 27, um domingo, o navio do capitão Thomas Alexander Cochrane, armado até os dentes, aguardava fora da barra o momento certo para a ação. A tripulação de mercenários recolheu a âncora, levantou as velas e foi singrando, sorrateiro, as águas revoltas da entrada da baía de São Marcos. Com uma falsa bandeira britânica tremulando na popa, iluminada pelos primeiros raios do sol da manhã, passou em frente ao forte de Santo Antônio sem ser incomodado.

Fazia quase um ano que D. Pedro I havia dado o famoso, embora inverídico, grito do Ipiranga. Uma lenda, já que, acometido de severa diarreia, o esforço de um grito poderia trazer graves consequências para o coitado do cavalo que o transportava.

Maranhão e Pará, fiéis à coroa portuguesa e vivendo um período de prosperidade, resistiam bravamente à ideia de aderir à independência. Mas as forças imperiais já tinham dominado quase todo o país, deixando o governo do nosso estado em permanente sobressalto.

Os militares que guarneciam o porto, iludidos com a bandeira amiga da Inglaterra, enviaram um brigue (pequeno veleiro) com mensagem de boas-vindas ao navio visitante. Ao subir a bordo, nosso oficial foi rendido, e o seu brigue apreendido. O capitão então enviou por ele uma carta ao governador Agostinho de Farias exigindo a adesão imediata à independência, afirmando que, fora da baía, estaria toda a frota imperial, aguardando apenas a sua ordem para bombardear a cidade. Era um blefe, Cochrane tinha apenas aquele navio.

Mas Lord Cochrane era uma celebridade internacional. Os seus feitos de guerra, a sua fama de estrategista genial e a sua violência implacável corriam mundo. Havia afundado dezenas de navios franceses, a ponto de ganhar de Napoleão o apelido de “O Diabo”. Mas ele era também insubordinado e louco por dinheiro. Insatisfeito com o salário de oficial da marinha britânica, tentou obter um dinheirinho extra de maneira pouco convencional. Junto com um falso coronel francês, usou suas redes sociais (não eletrônicas, evidentemente) para divulgar a “fake news” de que Napoleão havia morrido em combate, o que fez as ações dispararem na bolsa de Londres. E Cochrane, em conluio com o comparsa, realizou grande lucro vendendo suas ações, que logo depois despencaram, diante do desmentido oficial. O golpe foi descoberto, e ele foi expulso da marinha e preso.

Acontece que o agora ex-militar já tinha se tornado uma lenda. Um mito. Aí começou a sua vida de mercenário, tendo lutado ao lado de vários libertadores na América do Sul. Logo foi contratado por D. Pedro I, à custa de muito dinheiro e condecorações.

Apavorados com a ameaça de bombardeio, já no dia 28 os governantes capitularam, e trataram de fazer amizade com Cochrane, oferecendo uma grande festa em sua homenagem. O local escolhido para o baile foi o imponente solar Cesário Veras, recém-construído na Rua do Egito, no.106, esquina com o Beco do Couto.

Diante da falta de registros sobre o evento, podemos imaginar o sobrado com seus janelões escancarados sobre as sacadas de ferro, as cortinas de veludo esvoaçando ao sabor da brisa da viração, parecendo acompanhar o ritmo da música que transbordava pelas janelas.

Iluminado por vários lampiões a gás, além dos sofisticados candelabros, com todas as velas acesas, o palacete resplandecia, em contraste com as ruas mal iluminadas. Os garçons, quase todos pretos, alforriados ou não, calçados em luvas brancas, serviam acepipes aos convidados. A alta aristocracia de São Luís e Alcântara, chegando em suas carruagens, formava uma fila que se estendia até o Largo do Carmo, provocando um engarrafamento inédito na cidade.

Os senhores, empertigados em suas casacas de tecido inglês, usavam adornos na lapela indicando o seu grau de nobreza. As damas, com seus inseparáveis leques, tentavam sobreviver dentro de roupas europeias, impróprias para o clima equatorial. O aroma dos seus perfumes franceses se misturava ao futum dos excrementos deixados pelos cavalos nos paralelepípedos, enquanto uma dúzia de escravizados tentava remover os dejetos.

O povo, que não havia sido convidado para a festa, se aglomerava no sereno da calçada em frente, admirado com tanto luxo e pompa.

A chegada triunfal do capitão arrancou suspiros das damas e das moças do sereno. Um escocês alto, bonito, de olhos azuis, com seus quarenta e oito anos e alguns cabelos brancos a lhe pratear as têmporas, vestido em uniforme de gala, ostentava condecorações e medalhas de guerra, algumas verdadeiras, outras falsas, como tantas coisas na vida daquele homem de caráter controvertido.

Ambicioso e mal-agradecido, dias após à festa, Cochrane saqueou a cidade sem pudor, incluindo comerciantes, navios do porto e até o tesouro do estado, de onde recolheu todo o dinheiro. Um verdadeiro arrastão.

Apesar da infâmia, o mercenário recebeu de D. Pedro I o título de Marquês do Maranhão e a honraria de se tornar o primeiro almirante da Marinha do Brasil. E a antiga Rua do Giz teve seu nome trocado para Rua 28 de Julho, em homenagem à forçada adesão do nosso estado à independência.

Não se sabe se por acaso ou vingança do destino, nessa mesma rua instalou-se a zona do baixo meretrício, com várias casas de saliência.

E assim, no nosso Maranhão, a independência acabou virando zona.

Chico Fonseca nasceu em São Luís, Maranhão, em 1949. É arquiteto e urbanista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, cidade onde exerceu sua profissão e mora até hoje. Casado, tem um casal de filhos e duas netas. Sempre dedicado à escrita, à literatura e à história do Maranhão, publicou crônicas, contos e poemas em blogs e outras mídias.

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*Embora romanceada, esta crônica é baseada em fatos históricos, alguns deles relatados no livro 1822, de Laurentino Gomes.

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