Artigo de Sérgio Magalhães, reproduzido abaixo, publicado originalmente no jornal “O Globo”, no dia 1º de agosto de 2020.
Urbe CaRioca
Amazônia, cidade e vida
Sérgio Magalhães – O Globo
01/08/2020 – Link Original
Não nos bastará regular a terra e permitir avanços supostamente legais
Tão díspares, no entanto são interdependentes. Nas condições atuais, um não vive sem o outro.
A floresta tem estado na preocupação do mundo pelo reconhecimento da sua importância para a estabilidade climática e ambiental e pelo que significa no esforço de um novo modo de apropriação sustentável do planeta. Igualmente, pela compreensão sobre o valor social e antropológico dos povos que nela vivem e que demandam cuidados especiais para sua preservação.
Progressivamente degradada e devastada, a floresta tem recebido apoio internacional importante, inclusive com ameaça de fundos trilionários de nela não mais investirem enquanto o governo brasileiro for displicente e relapso em relação aos seus compromissos.
Esses movimentos político-ambientais, nacionais e internacionais, articulados, ativos, são expressão da consciência coletiva em defesa do patrimônio que é brasileiro e da Humanidade.
A Amazônia derrama sobre o Brasil a vida que fertiliza os campos e permite que as cidades tenham condições de salubridade.
Mas o caminho tem duas mãos.
É na cidade que se formam os movimentos em defesa do ambiente, do clima, da Amazônia e do planeta. É no entrevero das ideias no urbano que surgem as forças capazes de sensibilizar governos e sociedade para construir políticas em acordo com um futuro saudável.
No entanto, a cidade, no caso a brasileira, onde está quase toda nossa população, ainda não conseguiu despertar a consciência coletiva para seus próprios grandes desafios.
A Amazônia nos garante a água. Água que falta na torneira de 35 milhões de brasileiros, que esbanjamos em perdas inaceitáveis, que se degrada na falta de esgoto sanitário para metade da população. Água é vida. É condição urbana essencial, e, contudo, nossa sociedade e nossos governos tratam a questão como invisível — termo que foi recentemente descoberto por alta autoridade.
Nosso país pede um grande acordo em benefício da vida.
Na Amazônia sejamos radicais: nenhum quilômetro quadrado a menos de floresta. Não podemos admitir o uso predatório legal ou ilegal desse bem de todos. Não nos bastará regular a terra e permitir avanços supostamente legais. O esforço há de ser maior.
Na cidade, para que ela seja instrumento do desenvolvimento, matriz do conhecimento, lugar de políticas inovadoras e que busquem a equidade, precisamos estancar o crescimento predatório, agora que a população tende à estabilidade. Havendo crescimento da área ocupada, não teremos condições de universalizar os serviços públicos. Não haverá possibilidade de reduzirmos a vergonhosa desigualdade intraurbana.
Na cidade, tal como na floresta, também sejamos radicais: nenhum quilômetro quadrado a mais de expansão territorial. Será condição de preservarmos a vitalidade social e econômica da vida urbana. Na cidade há suficiente área a aproveitar nos limites já ocupados.
Por certo, uma das consequências possíveis da pandemia seja ampliarmos nossa compreensão sobre como estamos todos juntos, interdependentes, como nossas vidas não são apenas nossas. Como o mundo é um só.
Nesse caso, não há de surpreender que proporções territoriais e populacionais tão díspares, como a Amazônia e a cidade, sejam fontes de vida uma para a outra.Temos dois sistemas fundamentais ao nosso desenvolvimento. Um ocupa 50% da área nacional, a Amazônia; outro ocupa menos de 1% do território, o conjunto das cidades. Um é quase vazio, outro é denso. Entre eles há uma característica essencial: ambos são centros e propulsores de vida.