A análise na Coluna do Raí une a cidade de Paris – urbanismo e arquitetura – ao homem vitruviano, à genialidade de Leonardo da Vinci, ao comportamento humano, e aos feitos dos atletas olímpicos.
Urbe CaRioca
Da Vinci e sua divina escala humana
O urbanismo tem grande impacto na vida e no comportamento humano, na arte e nos esportes
Por Raí – O Globo
No coração, e na alma, da Cidade Luz brilha a chama Olímpica, pela primeira vez com energia 100% elétrica, na base de um enorme balão de 30m de altura, em um anel de 7m de diâmetro, arde o fogo sagrado. Este efêmero monumento e sua localização simbolizam bem a grandeza do evento imaginado pelos franceses. Está localizada no Jardin des Tuileries, estrategicamente posicionada na origem do eixo historico da capital francesa. Eixo este, a base do urbanismo parisiense que começou a ser desenhado no o século XVII, a partir do palácio do Louvre, na época residência da família real em Paris. A pedido do Rei, foi planejado por André Le Nôtre, o mesmo paisagista dos jardins de Versailles, um grande jardim no lugar do antigo palácio com o mesmo nome , e também o que hoje é conhecida como Place de la Concorde, lugar onde nossa princesa Rayssa Leal brilhou e encantou. Na sequência já se imaginou uma via-parque generosa e arborizada, que já nasceu com o nome de Champs-Élysées e se estendeu até o Arco do Triunfo, “estrela” de onde hoje partem 12 avenidas idealizadas pelo Baron Haussmann, já na época de Napoleão III (1848). Haussmann foi o grande responsável por um plano ousado, abrindo grandes avenidas e bulevares intercalados por belos jardins, parques e praças, e por vários outros padrões urbanísticos e arquitetônicos ainda vigentes na capital francesa.
Faço questão de citar o urbanismo da cidade-sede dos jogos, até porque ela só é como é por reflexo de tudo o que foi planejado lá atrás e por todas as decisões estratégicas que vieram depois. E porque o urbanismo vai muito além de apenas projetar e ordenar espaços e serem construídos. É uma ciência que tem um grande impacto na vida e no comportamento humano, e consequentemente nos esportes e nas experiências vividas por aqueles que visitam a cidade.
Neste mesmo eixo, também referência para a primeira linha de metrô da cidade, do ano de 1900, é hoje muito mais óbvio e extenso, linha reta que vai do parque de Vincennes ao castelo de St Germain-en- Laye, mesma região de Versailles, podemos visualizá-lo/imaginá-lo através dos spots Olímpicos. O Louvre, onde foi o encontro dos chefes de estado na véspera da abertura, Tuileries, Place de la Concorde, skate, basquete 3X3, break, BMX, Museu Grand Palais, esgrima, arena La Défense, natação e polo aquático, Versailles, onde se disputam as provas de equitação.
Paralelo a este eixo, margeando o Rio Sena, a arena Bercy, onde Rebeca reinou, esplanada dos Invalides, arco e flecha, Champs des Mars, vôlei de praia e os tatames em que Bia deitou, rolou, venceu e nos emocionou. Entre estes dois eixos, Parque dos Príncipes e Roland Garros. Já no eixo perpendicular, Norte/Sul, que une os dois aeroportos, estão o Stade de France, rúgbi e atletismo, parque aquático, mergulho e nado sincronizado, a arena da Porta de La Chapelle, badminton e ginástica rítmica, Arena Paris Sul, halterofilismo, vôlei e tênis de mesa.
Se olharmos o mapa, Paris é um círculo, delimitada por um anel viário com 38 portas. Pouco mais de dois milhões de habitantes. Apenas 20 bairros, todos eles com subprefeitos, chamados aqui de prefeitos de bairro. Ou seja, uma cidade participativa, que estimula o engajamento cívico. Eu a definiria como uma capital com uma divisão/gestão geopolítica de escala humana. 105 km2 de superfície, 1.500 km de ciclovias, 226 km de linha de metrô.
Arquitetura, urbanismo e geografia devem colaborar para termos cidades mais sustentáveis, eficientes, habitáveis, justas e humanas. E por falar em cidades mais humanas…
Se pensarmos nestes eixos Leste-Oeste, Norte-Sul, antes pontos cardeais em torno do Rei, hoje em torno do povo, e no “círculo Paris” como representações gráficas, em um momento de busca da/o atleta perfeito, humano em seu habitat, poderemos logo pensar no Homem Vitruviano de Leonardo Da Vinci. Um dos grandes símbolos do Renascimento, este estudo foi inspirado em uma passagem da obra que combina a história da arquitetura e da engenharia, escrita por Vitrúvio Polião, arquiteto que viveu antes de Cristo e que acreditava nas proporções do homem ideal como base para construções de templos e casas. O homem, como criação divina, seria perfeito para qualquer tipo de sustentação. Nessa busca, ele utiliza elementos básicos da geometria, o círculo e o quadrado. O círculo, o cosmos, o divino, celestial, e o quadrado, o material, o humano.
Na visão de Da Vinci, esta figura, com a perfeição de suas proporções, representa a beleza, o equilíbrio e a harmonia. Beleza também matemática, mecânica e geométrica, o homem como modelo pro mundo, na arquitetura e seus derivados, na ciência e nas artes, para ele tudo isso era uma coisa só. A obra simboliza também a crença renascentista na capacidade da arte de capturar e refletir a ordem natural e a beleza inerente ao universo, penso na já icônica foto de Gabriel Medina saindo do mar.
Em seu registro, para obter a tão sonhada resposta ao enigma de Vitrúvio, Leonardo acrescenta uma sequência de imagens, criando uma animação, movimento. A perfeição humana necessita, portanto, de movimento, de esporte, aquilo que nos dá a vida e que a vida nos dá.
Ele, gênio pintor, engenheiro, cientista, escultor, arquiteto, anatomista, botânico, cartógrafo, chega à conclusão de que o próprio homem, em movimento, como parte da natureza e do cosmos, pode e deve ser referência para qualquer intervenção dele próprio. O homem como microcosmo seria a imagem e semelhança do macrocosmo.
Logo, assim como eixos, círculos e quadrados bem desenhados podem impactar positivamente a vida urbana. Nossos atletas heróis, como Bia Souza, Rayssa Leal, Rebeca Andrade, Caio Bonfim e outros, podem e devem servir como referências, ética e estética, de força, beleza, estratégia e movimento, provado na arte e na ciência do esporte olímpico, para construir o Brasil que desejamos, mais humano, com gestões de escala humana. Eles próprios, a representação do divino no corpo e na alma humana.
Atletas que alcançam uma outra dimensão, sobre-humana. Mas, para entrarem no Olimpo, passam pelas emoções mais humanas, dor, lágrimas, sorrisos, desespero, depressão, euforia, gritos, alegria, tristeza, frustrações, tombos, muitos tombos, para enfim chegar a superação, a super-ação física e mental, a sua ascensão. E nos fazer, a todos, chorar, nos emocionar.