Rio de Janeiro, Mapa Rodoviário. http://www.brazadv.com.br |
DO RIO
Leonardo da Vinci, proposta de níveis diferentes para o tráfego The Urban Earth |
Quais são as principais bandeiras da arquitetura hoje?
Temos que ter uma política urbana consistente que incorpore a dimensão da qualidade da produção do espaço público. Estamos com uma população urbana de 85% do total do Brasil. São mais de 170 milhões vivendo em cidades, e partimos de 12 milhões na metade do século passado, quando o processo de industrialização brasileiro se expandiu com mais consistência. Esse crescimento ocorreu num período que não é dos mais longos, entre 50 e 60 anos. Isso é uma dimensão monumental. Pouco países do mundo experimentaram.
Estrada de Ferro Leopoldina, RFFSA, Rio de Janeiro, 1970 Clube Amantes da Ferrovia – Foto: autor desconhecido |
Quando foi necessário, o Brasil tratou de desestimular a construção de moradia urbana, na década de 40, quando houve a consolidação da lei do inquilinato. Os capitais aplicados na produção de moradia para venda ou aluguel foram desestimulados e conduzidos quase que obrigatoriamente para a produção industrial ou para o capital financeiro. O país recolheu das cidades para produzir outros setores. A mesma coisa ocorreu com o transporte público. O país nos anos 60 desconstruiu totalmente o sistema urbano sobre trilhos. Todas as cidades que tinham bondes perderam e os investimentos canalizados para a indústria automobilística. Para produzir o agronegócio com a dimensão continental que tem, de certo modo expulsou os moradores do campo e ofereceu as cidades de modo predatório.
O tema urbano não participa da consciência coletiva com a importância que tem talvez porque a complexidade da cidade seja exagerada para as pessoas. Políticas públicas de outra natureza que influenciam na cidade de modo negativo não são percebidas pelo morador e sequer pelos governos.
Eu acho que não há essa clareza. Não há essa demanda. Não está colocada na imprensa. E o governo é por natureza reacionário, no sentido de que apenas reage. É preciso que haja uma demanda social, que sensibilize as decisões políticas. Precisa ter temas objetivos para canalizar um esforço geral. Por exemplo, há uma questão ampla como o problema da representação política da sociedade. Não dá para abrigar todo esse aspecto. Aí escolhe-se um tema: a questão da ficha limpa. Passa a ser um cavalo de batalha e de algum modo isso evoluiu para uma legislação melhor. No caso das cidades, isso não está colocado porque é muito complexo de perceber.
Rio de Janeiro: engarrafamento diário www.skyscrapercity.com |
Avenida N. S. de Copacabana globo.com |
A mobilidade urbana. É um despropósito, um acinte antidemocrático a exigência que se faz para as pessoas trabalharem, estudarem nas cidades. A perda de energia brutal que um transporte de ínfima qualidade oferece. Não compreendo como não há uma reivindicação muito mais forte de quem mora na periferia e leva duas, três horas, e passa por linhas de trem que poderiam estar transformadas em metrô, com muito mais qualidade. A impressão que dá é que as pessoas acham que é da natureza das coisas.
Quando passageiros de trens protestam nas linhas férreas do Rio não é uma manifestação disso?
É uma manifestação. Mas como se constrói uma praça Tahrir, como se fez no Egito, depois de 40 anos de ditadura? Como isso vira um movimento? É um processo mais difícil. No Rio, é possível melhorar a condição de mobilidade com preços muito menores do que se divulga. Há uma rede de 200 km de trem subutilizada, que pode ser transformada em metrô, por metade da expansão da linha 1, atendendo a 70% da região metropolitana.
Rio de Janeiro: Linhas de trem e metrô www.skyscrapercity.com |
Como o Rio não tem uma política metropolitana, a política de transporte é municipal. E a atribuição do município é a rodovia. Por falta de plano metropolitano, o Rio investe rodoviariamente em projetos de 40 anos atrás. O sistema de trens e metrô do Rio, em comparação com o de São Paulo, é ínfimo o investimento. São Paulo há 30 anos investe constantemente na transformação de trens e implantação na linha de metrôs. Isso, num território compatível com a zona sul do Rio, há 12 linhas de metrô com 30 conexões entre elas. São Paulo é onde o sistema de metrô está melhor articulado no Brasil.
Rio de Janeiro: Via exclusiva para BRT Blog Meu Transporte |
Mas acredito que nos próximos tempos São Paulo terá uma possibilidade de convívio e de acessibilidade que vai dar uma distância maior em comparação às cidades brasileiras. São Paulo tem uma condição de adensamento no coração metropolitano, da praça da República ao Morumbi, muito grande. Num território razoavelmente pequeno, há uma acessibilidade muito grande.
O poder público e a sociedade não estão atentos para isso. A construção dessas linhas rodoviárias, como o Arco Metropolitano, a Transoeste, passando por áreas hoje vazias é um estímulo para a ocupação. A mobilidade urbana, tornar as cidades mais compactas, investir em meio ambiente e saneamento, tudo se consubstancia num projeto de cidade e de país. O Brasil tem que ter um projeto para as suas cidades. Assim como tem para as indústrias. Precisamos ter, não um modelo de cidades, mas um projeto de cidade.
Acho que não é uma linha só. Todos temos responsabilidade: IAB, a imprensa, o governo…
Primeiro: BRT não precisa ter duas ou três pistas de automóveis. São coisas distintas. Onde a cidade existe, deve se tentar preservar o máximo. Não enfraquecer os vínculos de vitalidade que ela tenha.
GUARATIBA, Rio de Janeiro Imagem: internet |
O sr. se refere às remoções?
Remoções, comércios estabelecidos. Demolir para construir estrada para carro é ruim. [Quando] Não tem nada [nenhuma ocupação], tem que ter uma regra para impedir que se ocupe. Não há vantagem em ocupar Guaratiba. Só especulação imobiliária, os donos de terreno podem tem vantagem.
Mas a cidade não tem nenhuma em se expandir para Guaratiba, Vargem Grande. É apenas um resquício de uma ação que imagina que o futuro é infinito e positivo.
Os arquitetos são os mais competentes para isso. Mas obviamente não têm mais a pretensão de achar que está no desenho dele resolver tudo. Os arquitetos têm a compreensão da sua especificidade disciplinar e da necessidade de interagir com outras e com os interesses da sociedade. Não temos mais um modelo que tínhamos a maior parte do século 20 e achávamos que poderíamos implantar em todas as cidades do mundo. A realidade precisa ser trabalhada em conjunto. Por que as pessoas vivem nas cidades? Diz-se que é porque tem emprego, educação, saúde… Tem tudo isso. Mas a origem disso é que a cidade é onde as pessoas se encontram, onde há troca social. O século 21 está nisso. As boas cidades do século 21 é onde se permita acontecer isso. E essa interação é um bem incomensurável que o país e o Rio têm.
Elas são desagregadas. Não respondem à questão da cidade que se quer. O Brasil precisa de um desenho de cidade.
Não. Ele tem bons instrumentos, mas não tem ideias. Isso que precisa ser definido: qual cidade queremos no futuro. Queremos uma cidade em que as pessoas convivam, trabalhem em boas condições, tenham uma vida, sob o ponto de vista ambiental, compatível com os dias de hoje. Precisamos uma cidade em que o espaço público seja garantido. O espaço público das cidades brasileiras é abaixo da crítica. Mesmo nas áreas ricas, se comparamos com as possibilidades atuais, com as cidades desenvolvidas, não tem desenho, projeto.
Avenida Ataulfo de Paiva, Rio de Janeiro, Leblon globo.com |
As cidades do mundo desenvolvido têm essa tradição. Barcelona era uma cidade contida no século 18, 19, com proibição real. Foi feita uma revolução para derrubada dos muros nos quais ela era contida. Quando a derrubada foi feita, ficou disponível um enorme território, que hoje é o plano Cerdà. Por muitos anos, houve intenso debate sobre como ocupar esse território. Foi feito um concurso público, avaliado por uma comissão e votado pela população em 1855. Há um processo cultural longo de desenvolvimento disso.
As cidades são feitas coletivamente e pelos edifícios, indivíduos construídos. Eles também têm exigências que devem ser compreendidas. A soma de bons edifícios não necessariamente haverá uma boa cidade. Mas sem eles, tampouco terá. Eles precisam corresponder o tempo de hoje. Construímos de um modo muito ultrapassado, com perda de energia, sem considerar questões ambientais…
Barcelona, Plano Cerdà, 1859 www.planocerda.blogspot.com.br |
A matriz é a mesma. Não estamos atentos para isso. Arquitetos, sociedade, quem investe… A Argentina, o Uruguai têm outros padrões de construção edilícia. Ficamos muito tempo voltados para uma questão econômica muito rudimentar, que era sobreviver em inflações galopantes. Superamos isso. Hoje temos uma sociedade mais exigente do ponto de vista ambiental, está baseada em produtos do conhecimento do que em materiais, e exige, para que tenha condições de se desenvolver, um outro tipo de espaço. As expansões das cidades de qualquer jeito não atendem mais a essa demanda nova, nem para os pobres nem para os ricos. Os bairros isolados não satisfazem mais.
Os estrangeiros estão interessados porque estão com pouco mercado de trabalho lá [no exterior]. Não acho ruim.
A arquitetura é muito inserida globalmente. O [arquiteto espanhol Santiago] Calatrava não está aqui para trazer novas ideias. Ele está aqui porque faz parte do top da arquitetura e qualifica quem o contrata. A cidade que pega um exemplar desses entra no rol das cidades que têm um exemplo. O mundo gira desse modo. Mas isso é exceção da exceção. As cidades não são feitas desse elemento pontual, embora possam ser significativos. Paris não é só o [Museu do] Louvre. O Rio tem a vantagem de ter elementos geográficos que pontuam a identidade coletiva há 450 anos. As edificações têm responsabilidades diferentes. A troca de experiência é importante, mas não é ela que vai dizer como vamos organizar a cidade. Ou como a arquitetura brasileira vai progredir nos próximos anos. É importante que os governantes e os empresários circulem e se mobilizem por uma obra mais bonita, bem feita e acabada. Temos uma obra magistral, como o Ministério da Cultura, o Museu de Arte Moderna, que são obras magistrais. Mas não são só de obras-primas que são feitas as cidades. Ela é feita do comum. É esse comum que precisa ter um padrão técnico-construtivo melhorado, ser espacialmente interessante, ter uma inserção positiva na cidade e não vire as costas para a cidade.
Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro www.construtividade.blogspot.com.br |
Todo edifício público deveria ter concurso público. Tem que ser uma meta. É um investimento coletivo, que deve ser bem administrado. É uma inserção da sociedade para que aquele lugar tenha uma vida melhor. Para isso precisa fazer um esforço para ser o melhor possível. Entre os instrumentos possíveis, o concurso é o mais adequado.
A obra mais cara que tem é aquela sem um bom projeto. Quanto melhor o projeto, menos cara e mais adequada é a obra. O bom projeto pressupõe um bom profissional e um bom cliente. O cliente tem que saber o que quer. Se você não tem um bom projeto, terá um custo muito maior. Numa obra particular, ninguém fará uma casa sem saber que projeto é. Ninguém chama o construtor, pede uma casa de três quartos e deixa ele decidir. Se existe isso no governo, está errado. O projeto é o instrumento para antever o que se vai construir, inclusive os custos. Só depois de um projeto completo é que se vai contratar o construtor pelo melhor preço. A indefinição aumenta o preço.
E feito por quem? Por quem tem o interesse de fazer o que for mais conveniente para ele. Desde a Renascença isso está separado. É feito uma determinação prévia e depois a construção.
A Idade Média não necessariamente foi das Trevas. Mas nesse aspecto sim.
Não tenho essa avaliação precisa. Mas não é parar o ônibus e as pessoas atravessarem. Por isso precisa ter tanto cuidado nessas autopistas que viram BRTs. Como atravessa a Avenida das Américas. Vi uma entrevista na televisão em que a mulher dizia que atravessava ali [fora da faixa] porque a travessia destinada a ela estava a 500 metros dali. Se não trata para as pessoas, você faz isso. Não é que as pessoas que projetaram sejam desumanas. Não está nela isso [a preocupação com o espaço público]. Não são arquitetos, são engenheiros de tráfego, se importam com aquilo ali [o fluxo dos ônibus].
Em casos específicos sim. É quase como um plebiscito.
Vista aérea do trecho do Elevado da Perimetral que será demolido Foto: Agência O Globo |
A derrubada [do elevado] da Perimetral [no centro do Rio], por exemplo?
Poderia. Eu sou a favor [da derrubada]. É vantagem a junção da cidade com o mar, principalmente na Praça 15. Já declaro meu voto caso houver. Há defesa de preservá-la para fazer passeios, mas é ridículo isso. Nessas idas e vindas, temos uma linha progressiva qualificadora.
Sim. A questão da habitação popular. O debate da favela faz parte da consciência coletiva. Há uma senoide, mas ascendente. É uma cultura urbana importante.
Na avaliação do sr. o Rio é vanguarda nesse debate?
O Brasil e o Rio em particular estão conseguindo construir uma cidade com a diversidade que enriquece. O urbanismo brasileiro tem um corpo doutrinário que corresponde a uma cidade diversa. Pela nossa história mais recente, pelos 40 anos de lutas políticas e sociais, como a questão de remoção de favelas, e pela constituição social do povo, a integração entre etnias e essa multiplicidade, temos um caldo cultural que é capaz de corresponder a um urbanismo que reconheça essas pré-existências e possa responder adequadamente sem planos excludentes. Esse é o momento do urbanismo contemporâneo mais avant-garde. É o caso da urbanização de favelas no Rio.