Quanto mais a gente reza, de Sérgio Magalhães

O artigo reproduzido abaixo foi publicado originalmente no jornal O Globo deste sábado, dia 16. É de interesse para todos que acompanham as questões relativas ao planejamento urbano e ao licenciamento de obras particulares no Rio de Janeiro e no país.

Urbe CaRioca

Quanto mais a gente reza

O Ministério da Economia trabalhará bem se, no seu âmbito, garantir financiamento à mobilidade urbana

O Globo, 16 de janeiro de 2021

*Sérgio Magalhães – Link original

Como o ministro Paulo Guedes tem pequenas questões a enfrentar, o seu ministério passou a legislar também sobre licenciamento de obras…

Nos países civilizados, a construção é regulada em benefício da segurança e do bem-estar coletivo. O interessado apresenta seu projeto ao órgão público, que o avalia quanto ao atendimento da legislação. Atendida a lei, é autorizada a obra.

O Ministério da Economia quer inovar. Acha que os negócios emperram por conta da burocracia na aprovação de obras e na emissão de alvarás de funcionamento. Assim, pela Resolução CGSIM nº 64, já vigente, retira dos municípios a atribuição constitucional de licenciar as obras, de fiscalizar o que foi feito, e de expedir o alvará para atividade econômica no imóvel. O serviço público de licenciamento será substituído por empresas habilitadas pelo ministério. Elas integrarão o recém-criado Murin, o “Mercado de Procuradores Digitais de Integração Urbanístico de Integração Nacional” (sic). O particular interessado contratará empresa inscrita no Murin para obter a autorização de obra.

As cidades melhorarão? As edificações serão mais seguras, mais bonitas?

“É uma revolução, é a desestatização do serviço público, que passa a ser prestado por empresas reguladas e em livre concorrência”, diz o secretário de advocacia da concorrência e da competitividade do ministro Paulo Guedes.

Se a meta for essa, errou o alvo.

O que quer o ministério? Quer que o interessado pela obra declare para a empresa, sob responsabilidade civil e penal, que o seu projeto cumpre todas as leis: urbanísticas, edilícias, dos bombeiros, do Comando Regional Aéreo, ambientais, fundiárias, de vizinhança, de risco, entre outras. Com essa declaração, mediante pagamento, a empresa autoriza a obra “de maneira automática”.

Quem, sem os instrumentos técnicos de que dispõe o serviço público, poderá se responsabilizar, de boa-fé, que o projeto atende a toda a legislação? Um super-homem? Um mentecapto? A empresa do Murin não será.

A tal revolução, de fato, é uma falácia. O serviço público municipal é substituído pelo particular interessado, não pela empresa. E resta uma nova burocracia onerosa centralizada em Brasília.

Há porém outro essencial aspecto a ressaltar. O serviço público de licenciamento e de fiscalização de obras é um instrumento do planejamento urbano, e constitui o controle urbanístico. Sem ele, o planejamento fenece. Sem planejamento, as cidades decaem — como estamos vendo.

No mundo contemporâneo, a baixa qualidade dos serviços urbanos compromete o desenvolvimento do país. Em vez de extinguir os serviços públicos de planejamento, a Economia deveria ajudar a melhorá-los e fortalecê-los: veria os negócios não emperrarem e o PIB crescer. Ao revés, o seu enfraquecimento convém ao avanço da irregularidade urbana e, em grande medida, à tomada de partes das cidades por bandidos e milícias.

Os países modernos, de economia pujante, sabem disso e cuidam de suas cidades.

O Ministério da Economia trabalhará bem se, no seu âmbito, garantir financiamento para a mobilidade urbana, a urbanização de favelas e dos bairros populares, para a modernização das infraestruturas e se oferecer às famílias crédito habitacional fácil, barato e acessível.

Justamente quando a população brasileira foi às urnas na esperança de novos governos que cuidem melhor de seu ambiente construído, é lastimável que o ministério saia de seu mister para gastar tempo e dinheiro público para evidenciar um entendimento rasteiro sobre a produção do espaço brasileiro. O tempo é de planejar e de ordenar as cidades, não é de deixá-las à sanha da especulação mais grosseira. Basta de assombração!
* Sérgio Magalhães é arquiteto e urbanista

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *