Desapropriação por hasta pública e o estádio do Flamengo, de Vinícius Monte Custodio

Reproduzimos mais uma análise sobre a questão do Estádio de Flamengo a ser construído no terreno do antigo Gasômetro por exclusivo beneplácito do Prefeito do Rio, em ano eleitoral.

No foco do artigo escrito pelo advogado Vinícius Monte Custodio, advogado, doutor em Direito Econômico e Economia Política na Universidade de São Paulo e mestre em Direito Urbanístico e Direito Ambiental pela Universidade de Coimbra, estão os aspectos jurídicos sobre da declaração de desapropriação e a futura utilização do lugar, diante da finalidade do expediente prevista em lei.

Note-se que todas as reportagens mencionam que o terreno foi desapropriado, um erro de base e recorrente. O imóvel foi “declarado de utilidade pública para fins de desapropriação”, passo inicial de um processo que pode se estender até durante cinco anos, fora os questionamentos jurídicos que podem surgir.

Urbe CaRioca

 

Desapropriação por hasta pública e o estádio do Flamengo

Vinícius Monte Custodio – Conjur

Link original

No último dia 24 de junho, o prefeito do Rio de Janeiro publicou decreto declarando a utilidade pública, para fins de desapropriação por hasta pública, entre outros, do imóvel do antigo Gasômetro, na zona portuária, cobiçado pelo Clube de Regatas do Flamengo para a construção de seu estádio de futebol. [1] E no dia 9 de julho a Secretaria Municipal de Coordenação Governamental publicou edital do leilão presencial do domínio útil (terreno de marinha) do referido imóvel, que tem 89.592,304 m². [2]

A desapropriação é um instrumento constitucional de aquisição de bens pelo poder público por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro ao proprietário, cujo procedimento deve ser estabelecido em lei (artigo 5º, XXIV). Conforme o Decreto-Lei 3.365, de 21 de junho de 1941, que é a lei geral das desapropriações, a desapropriação ordinária segue, em linhas gerais, o seguinte rito judicial [3]:

1. o expropriante declara a utilidade pública do bem a ser expropriado;
2. o promotor da expropriação ajuíza a ação de desapropriação com a oferta do preço;
3. o juiz designa perito para avaliar o bem;
4. o expropriado é citado para apresentar defesa;
5. existindo discordância quanto ao preço, o perito apresenta o laudo de avaliação;
6. o juiz sentencia o preço da justa indenização;
7. o promotor da expropriação paga a indenização, adquirindo o bem.

O beneficiário da expropriação é aquele em proveito de quem se promove a desapropriação, normalmente uma entidade pública ou delegatária de função pública, e a quem incumbe, em regra, a obrigação de indenizar, amiúde se confundindo com o promotor da expropriação. Sem embargo, em caráter excepcional, pessoa eminentemente privada pode ser beneficiária da desapropriação quando estiver em condições de dar ao bem uma destinação de interesse público. É o caso da desapropriação urbanística ordinária e o da desapropriação por interesse social, em que a revenda ou a locação do bem expropriado são a praxe.

Esse benefício a pessoa eminentemente privada pode ocorrer tanto por via direta, situação em que o bem expropriado ingressa em sua esfera de direitos sem passar provisoriamente pelo patrimônio do promotor da expropriação [4], quanto por via indireta, situação em que o bem expropriado ingressa provisoriamente no patrimônio do promotor da expropriação para só então passar à esfera de direitos daqueloutra [5].

A desapropriação por hasta pública é uma espécie expropriatória incidente sobre imóveis urbanos, para fins de renovação urbana e/ou regularização fundiária, plasmada nos artigos 158 a 160 da Lei Complementar 270/2024, que é o plano diretor da cidade do Rio de Janeiro. O legislador carioca não definiu se a desapropriação sucede diretamente pela hasta pública ou se o município adquire provisoriamente o imóvel para então aliená-lo em hasta pública, remetendo essa definição para regulamento específico do Poder Executivo. [6]

O Decreto 54.234, de 8 de abril de 2024, regulamentou a matéria, optando pela via indireta, ao determinar que a aquisição por hasta pública ocorrerá “sob condição suspensiva de aquisição da propriedade do bem pelo Município a partir de processo administrativo ou judicial de desapropriação, nos termos do Decreto-Lei nº 3365/41” (artigo 3º, II).

Rigorosamente, não se trata aqui de uma desapropriação por hasta pública, senão de uma desapropriação (urbanística ordinária) seguida de hasta pública (leilão), que é a modalidade licitatória para a alienação de bens imóveis inservíveis da administração pública a quem oferecer o maior lance (artigo 6º, XL, Lei 14.133, de 1º de abril de 2021).

A desapropriação é forma originária de aquisição da propriedade, pois a transferência do bem opera pelo fato jurídico em si, independentemente da vontade do expropriado. [7] Já a arrematação do maior lançador neste caso é forma derivada de aquisição, pois a transferência do bem opera, indiretamente, por meio de escritura pública de compra e venda definitiva [8] celebrada com o município (promotor da expropriação). [9]

Subavaliação de bens expropriados

Por um lado, essa solução é engenhosa, pois afasta os questionamentos constitucionais quanto à competência municipal para legislar sobre desapropriação, que é competência legislativa privativa da União (artigo 22, II). Deveras, os artigos 158 a 160 da LC 270/2014 não versam sobre desapropriação, e sim sobre licitação, matéria na qual os municípios têm competência legislativa suplementar (artigo 22, XXVII c/c artigo 30, II) [10]. Conforme o dispositivo regulamentar supratranscrito, a desapropriação do imóvel propriamente dita processa-se com base no DL 3.365/1941, de modo que não existe usurpação de competência legislativa.

Por outro lado, tal solução incorre em todas as velhas desvantagens das desapropriações ordinárias. A experiência ensina que os promotores da expropriação tendem a subavaliar os bens expropriados, com vistas à minoração do depósito inicial de imissão provisória na posse. O laudo de avaliação do imóvel, da Comissão Especial de Avaliação da Procuradoria-Geral do Município, por exemplo, adotou a planta genérica de valores do IPTU como base de cálculo, que é reconhecidamente inferior ao valor de mercado, obtendo um valor de R$ 138.195.000. [11]

Essa depreciação forçará inexoravelmente uma resistência do expropriado, que pode arrastar a lide por décadas, majorando os custos de aquisição do bem (custas processuais, honorários periciais e advocatícios, juros compensatórios etc.) e gerando desgaste político desnecessário, além de insegurança quanto ao custo total da transação para o beneficiário da expropriação.

Outro problema é que, pelo Decreto 54.234/2024, se o valor final da alienação vier a ser superior ao da avaliação, “o valor excedente será destinado a projetos habitacionais, de regularização fundiária e/ou de renovação urbana” (artigo 5º), em vez de ser destinado ao expropriado ou retornar ao arrematante. Ora, a finalidade da desapropriação não é arrecadar para o tesouro municipal, para isso já existe a tributação, mas atingir a utilidade pública consubstanciada na execução do plano urbanístico que a fundamenta. Admitir que o município se locuplete desse excedente é injustificável e distorce a natureza do instrumento, criando um exemplo pernicioso para o direito urbanístico brasileiro.

Ainda sobre a questão interfederativa, o DL 3.365/1941 estatui que todos os bens podem ser desapropriados pela União, pelos estados e pelos municípios (artigo 2º), mas a desapropriação de bens públicos deve ser precedida de autorização legislativa, sendo vedada a desapropriação de bem estadual ou federal por município e a de bem federal por estado (artigo 2º, § 2º). O DL 3.365/1941 também veda a desapropriação, pelos estados, Distrito Federal, territórios e municípios de ações, cotas e direitos representativos do capital de instituições e empresas cujo funcionamento dependa de autorização do governo federal e se subordine à sua fiscalização, salvo mediante prévia autorização, por decreto do presidente da República (artigo 3º).

De acordo com a certidão da matrícula do bem no registro de imóveis constante do Anexo I do edital de licitação (fls. 29/31), o imóvel expropriando está registrado em nome da Caixa Fundo de Investimento Imobiliário Porto Maravilha — FII Porto Maravilha e tem como instituição administradora a Caixa Econômica Federal (CEF). Nesse sentido, sendo a CEF, empresa pública cuja constituição foi autorizada pelo governo federal [12], a instituição administradora do bem, poderia este ser desapropriado pelo prefeito do Rio de Janeiro ou careceria o alcaide de autorização do presidente da República para tanto?

Imóvel integra fundo pertencente à CEF

Segundo a Lei 8.668, de 25 de junho de 1993, os fundos de investimento imobiliário, sem personalidade jurídica, são uma comunhão de recursos captados por meio do Sistema de Distribuição de Valores Mobiliários para a aplicação em empreendimentos imobiliários (artigo 1º) constituídos sob a forma de condomínio fechado (artigo 2º), cuja constituição, funcionamento e administração é autorizada, disciplinada e fiscalizada pela Comissão de Valores Mobiliários (artigo 4º). Seu patrimônio será constituído pelos bens e direitos adquiridos, em caráter fiduciário, pela instituição administradora (artigo 6º) e não se comunica com o patrimônio desta (artigo 7º).

A princípio, sem comunicação patrimonial, o imóvel não integraria o ativo da CEF, de modo que seria desnecessário prévia autorização presidencial, por não se tratar de ação, cota ou direito representativo do capital da estatal. Todavia, esse fundo só tem um único cotista, justamente a Caixa [13], razão pela qual, apesar de formalmente incomunicável, materialmente o patrimônio do fundo pertence à empresa. Essa distinção é importante, porque a CEF adquiriu todos os certificados de potencial adicional de construção [14] para viabilizar as principais intervenções da Operação Urbana Consorciada da Região do Porto do Rio (OUC Porto Maravilha) [15].

Consoante o Estatuto da Cidade, esses certificados podem ser convertidos em direito de construir unicamente na área objeto da operação (artigo 34, § 1º). Dessa maneira, a exigência de autorização presidencial para essa desapropriação, em última análise, protegeria a liquidez dos certificados adquiridos pela CEF.

Por fim, o Decreto 54.691/2024 determinou que o edital de licitação “estabelecerá as medidas necessárias à renovação urbana” (artigo 2º, § 1º), entre elas “a obrigatoriedade de implementação de equipamentos específicos” (artigo 2º, § 2º). Amparado nessa norma, o termo de referência obriga à “implantação de equipamento esportivo com potencial de geração de fluxo mínimo de 70 mil pessoas”.

Contudo, o decreto expropriatório não indica a hipótese legal de utilidade pública da desapropriação, o que é indispensável para a constituição válida do processo de desapropriação. [16] Se a causa de utilidade pública for a mera criação de estádio (artigo 5º, ‘n’, DL 3.365/1941), não se estaria diante de desapropriação para fins urbanísticos, sendo defesa a revenda para particular. Se a causa for a execução de plano de urbanização (artigo 5º, ‘i’, DL 3.365/1941), mais exatamente o plano da OUC Porto Maravilha, a indicação de um equipamento específico configura um direcionamento ilícito da licitação em prol de uma associação privada.

É que a OUC Porto Maravilha, em momento algum, condiciona a renovação urbana da área de especial interesse urbanístico da região do Porto do Rio de Janeiro à implantação de um equipamento específico. Consequentemente, qualquer projeto de renovação urbana alinhado aos princípios (artigo 2º, § 1º) e diretrizes (artigo 2º, § 2º) da operação, em tese, seria idôneo para alcançar as transformações urbanísticas estruturais, as melhorias sociais e a valorização ambiental por ela visadas. Portanto, não podem o decreto expropriatório nem o edital de licitação dispor contrariamente à lei que instituiu a OUC Porto Maravilha.

É fato público e notório, inclusive divulgado em vídeos nas redes sociais do prefeito, que o motivo da desapropriação do imóvel seria possibilitar ao Flamengo a construção de seu estádio, ante o impasse com a CEF quanto ao preço de venda. Em caso bastante similar, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro declarou nulo, por desvio de finalidade, decreto expropriatório do município de Paraíba do Sul para a constituição de distrito industrial direcionado ao interesse de uma única empresa privada, que tampouco havia chegado a um acordo com o expropriado quanto ao preço de venda. [17]

Assim, embora a desapropriação por hasta pública seja um instrumento alvissareiro para a execução de planos urbanísticos sem a necessidade de dispêndio de recursos do erário, é preciso que sua utilização seja controlada adequadamente. Do contrário, ela pode ser transfigurada em instrumento de arrecadação ilegítima de recursos para os municípios e de desapropriação em prol de interesse privado.

________________________________

[1] Dec. 54.691, de 21 de junho de 2024.

[2] Edital LP – SMCG 001/2024.

[3] Defendendo que a dita desapropriação amigável não é propriamente uma desapropriação, e sim um contrato de compra e venda de direito privado celebrado entre o promotor da expropriação e o expropriado, cfr. CUSTODIO, Vinícius Monte. Um novo olhar sobre as desapropriações no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 185-188.

[4] Cite-se, como exemplo, a desapropriação judicial prevista no art. 1.228, §§ 4º e 5º, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).

[5] Cite-se, como exemplo, a desapropriação com pagamento em títulos prevista no art. 8º da Lei 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade).

[6] “Art. 158. […] § 3º A desapropriação por hasta pública será implementada pelo Poder Público na forma prevista nesta seção e na legislação pertinente, sendo regulamentada através de ato específico.”

[7] Cfr. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 468.150/RS (Primeira Turma). DJ 06 fev. 2006. Rel. Min. Denise Arruda.

[8] “Art. 7º Implementada a condição suspensiva e efetuado o pagamento da proposta vencedora do leilão, com o ressarcimento de eventuais acréscimos legais, custas e despesas decorrentes do processo de desapropriação (referidos no art. 4º, VIII), será celebrada a escritura pública de compra e venda definitiva.”

[9] É diferente, portanto, da arrematação judicial de bem em hasta pública para a execução de dívida, em que a aquisição é originária, por inexistência de relação jurídica entre o arrematante e o anterior proprietário do bem, cfr. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 807.455/RS (Segunda Turma). DJe 21 nov. 2008. Rel. Min. Eliana Calmon.

[10] Cfr. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 423.560/MG (Segunda Turma). DJe 18 jun. 2012. Rel. Min. Joaquim Barbosa.

[11] Somente a título de comparação, a CEF vendeu esse imóvel, que tinha 113.209,33 m² (cerca de 26% maior) antes de ser parcialmente desapropriado em 2023 para a construção do Terminal Intermodal Gentileza, do FII da Região do Porto ao Caixa FII Porto Maravilha por R$ 226.300.000,00 em 29 de setembro de 2014. Somente com a redução proporcional do preço do imóvel, sem qualquer correção monetária, seu valor de mercado seria de R$ 173.093.846,55.

[12] DL 759, de 12 de agosto de 1969.

[13] Disponível em: https://www.caixa.gov.br/Downloads/investidores-institucionais-fii-porto-maravilha/Informe_Mensal_FII_Porto_Maravilha_2024_05.pdf. Acesso em: 13 jul. 2024.

[14] Lei 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade):

[15] LC 101, de 23 de novembro de 2009, alterada pela LC 267, de 05 de dezembro de 2023.

[16] Cfr. HARADA, Kiyoshi. Desapropriação: doutrina e prática, 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 59-60.

[17] Cfr. ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. 0001734-12.2010.8.19.0040 (Décima Sétima Câmara Cível). DJe 16 dez. 2016. Rel. Des. Marcia Ferreira Alvarenga.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *