Tendo em vista a recente aprovação do novo Marco Legal do Saneamento Básico, pela Presidência da República – com onze vetos – através do projeto de lei 4.162/2019, entendemos ser oportuno reproduzir dois artigos sobre o tema, publicados recentemente no jornal O Globo. Ambos de urbanistas consagrados, o primeiro é Sozinho, não vai, de Sérgio Ferraz Magalhães e o segundo, Em direção ao futuro, de Luiz Fernando Janot.
O projeto de lei visa ampliar a presença do setor privado na área. Atualmente, o saneamento é prestado majoritariamente por empresas públicas estaduais. O novo marco legal tenta aumentar a concorrência. O texto aprovado pelo Congresso tem, entre outros objetivos, universalizar o saneamento (prevendo coleta de esgoto para 90% da população) e o fornecimento de água potável para 99% da população até o fim de 2033.
Cabe lembrar que a proposta ainda retornará ao Congresso para apreciação dos vetos.
Urbe CaRioca
Sozinho não vai
Sérgio Ferraz Magalhães
Link original
Como as metas do Marco Regulatório do Saneamento se ajustam aos demais fatores estruturantes da cidade?
As metas do festejado Marco Regulatório do Saneamento são para valer ou são números para boi dormir?
Para muitos de nós que estamos em isolamento, a redução das atividades rotineiras, físicas e sociais, tem desequilibrado nosso organismo. A capacidade aeróbica reduz-se. Aumenta a ansiedade, diminui o apetite, enfim, somos um organismo complexo onde muitos fatores atuam em simultâneo para o nosso equilíbrio.
Quando o crescimento das cidades industriais se tornou um problema, os estudiosos do urbano buscaram no corpo humano a analogia para explicar a complexidade da nova cidade. Criou-se um novo conceito, a urbanística. Já no século XX, estruturou-se nova disciplina, o Urbanismo.
O Urbanismo compreende a cidade como um organismo vivo, de alta complexidade, cujos elementos estruturantes, tais como a mobilidade, a moradia, a infraestrutura, o saneamento, são interdependentes e precisam ser tratados em conjunto.
No Brasil, o Urbanismo teve algum prestígio em meados do século passado. Os municípios criaram serviços próprios, elaboraram-se planos diretores, buscou-se ordenar as cidades ainda limitadas.
Foi quando a explosão demográfica mudou radicalmente a questão. O país cresceu como nenhum outro, e as cidades se multiplicaram. A população urbana saiu de 12 milhões, chegando a 180 milhões de habitantes.
Dezenas de metrópoles emergiram nesse período, criando-se um patrimônio material e social inestimável.
Depois de um incipiente serviço federal para tratar das cidades, nos anos 70, o Brasil ignorou completamente o tema. Por quatro décadas tem dado as costas para suas cidades.
Se o Urbanismo é a disciplina que estuda a cidade, ao Planejamento pressupõe-se o trato do conjunto de cidades e do território. Nada disso existe.
As efêmeras políticas que de vez em quando se referem ao urbano são setoriais e desconhecem a interdependência entre elas. Assim, programas como o Minha Casa Minha Vida prejudicam ao invés de ajudar as cidades.
Agora se celebra o Marco do Saneamento, com metas robustas: universalizar a água tratada e alcançar 90% de esgoto coletado e tratado até 2033.
Mas como essas metas se ajustam aos demais fatores estruturantes da cidade? Como oferecer metas para o esgoto no abstrato, pelas estatísticas, sem considerar a dinâmica das cidades? Como ignorar que a rede de esgoto sem rede de drenagem e sem caminho pavimentado não se sustenta?
Já sabemos também: a população não aumentará. Mas a cidade construirá até 2033 cerca de 30% a mais de moradias, devido à diminuição do tamanho das famílias. Onde serão construídas?
Se não houver planejamento que crie e articule políticas públicas, que ajude a cidade a não expandir, as novas moradias seguirão o modelo das últimas décadas: uma expansão predatória, em baixa densidade, que amplia a miséria e torna insustentáveis os serviços públicos. Então, chegaremos em 2033 e lamentaremos que a meta não tenha sido alcançada.
O planejamento urbano e territorial é uma tarefa de Estado que precisamos construir tanto para rompermos o ciclo de pibinhos pífios que nos assolam há tempos como para reduzir a desigualdade intraurbana, que a pandemia escancarou.
Até aqui os governos têm ouvidos moucos para o tema urbano. Ignoram o enorme potencial que o investimento em cidades significa para a economia e para o desenvolvimento social.
Talvez as novas empresas de saneamento possam compreender que o sucesso de seu desempenho depende da inserção do setor no âmbito da cidade complexa, a ser planejada e ser tratada. E possam ajudar na mudança de rumo. Sem coordenação de políticas, o esforço será frustrado. Sozinho, não vai.
O Brasil não precisa de outras décadas de abandono da cidade. Precisa qualificá-las para alcançar o desenvolvimento.
Em direção ao futuro
Luiz Fernando Janot
Link original
Mais de 200 cidades europeias reestatizaram empresas de saneamento
Diante das circunstâncias atuais, é inevitável que as incertezas se multipliquem. Um sentimento de frustração emerge da dificuldade de enfrentar o inimigo invisível. O confinamento social aumenta a angústia e a ansiedade. Superada a pandemia, o mundo não será o mesmo.
O incensado modelo econômico predominante no mundo globalizado, mais uma vez, mostrou ser incapaz de dar conta de crises sistêmicas de naturezas diversas. Sem a interveniência do Estado, os problemas da saúde pública e da subsistência de parte da população brasileira teriam alcançado níveis ainda mais alarmantes.
O crescimento pífio da nossa economia já vinha causando grandes estragos. Para enfrentar o desemprego crescente nas camadas populares, o governo sancionou o projeto de lei que estabelece o “Marco Legal do Saneamento Básico” e com ele se propõe a atrair investimentos para atenuar a crise econômica.
Trata-se de uma iniciativa para incentivar as empresas privadas a investirem na implantação e gestão dos serviços de abastecimento de água e coleta de esgoto em áreas urbanas insalubres. O meio empresarial viu nesse marco a oportunidade para voltar a atuar em obras públicas.
No entanto, não está claro se a intenção do governo é acabar com a insalubridade nessas localidades ou utilizar o programa para privatizar as empresas estatais que atuam nessa área. Se a última hipótese for verdadeira, o Brasil estará mais uma vez andando na contramão das tendências mundiais.
Nas duas últimas décadas, mais de 200 cidades europeias reestatizaram suas empresas de saneamento para aplacar as críticas ao aumento abusivo dos preços praticados, à má qualidade dos serviços prestados e ao baixo investimento em áreas populares. Berlim e Paris são dois exemplos de cidades que adotaram essa opção.
Por outro lado, não há como não se preocupar com a má destinação dos recursos que serão licitados. Estima-se que algo em torno de R$ 700 bilhões deverão ser aplicados até 2033. Se em meio à pandemia a roubalheira aconteceu em larga escala, imagine quando esses vultosos recursos circularem entre políticos e empreiteiros corruptos.
Haja vista as construções hospitalares emergenciais com orçamentos inflados e os equipamentos médicos recentemente adquiridos com preços absurdos. Sem falar no material hospitalar desviado antes de chegar ao destino. Esse circo de horrores incluiu gastos desnecessários com a produção da cloroquina apenas para deleite do nosso presidente.
São esses desvios de caráter que podem comprometer o projeto de saneamento das áreas insalubres em nossas cidades. Surpreende-me o fato de a drenagem das águas pluviais e a pavimentação das ruas e caminhos para pedestres não terem sido consideradas. Em suma, coloca-se a tubulação e deixa-se a urbanização de lado.
A desigualdade social é causa, e não efeito, desses ambientes insalubres. As comunidades precisam receber maior atenção do poder público, principalmente em programas de interesse social nas áreas de educação e saúde. Os modelos de urbanização de favelas também precisam ser aprimorados.
A integração das comunidades ao seu entorno e ao conjunto da cidade é indispensável. Portanto, as intervenções não podem se limitar ao saneamento básico. As preexistências espaciais, a cultura dos moradores e os seus hábitos de vida não podem ser desprezados. Projetos desconectados da realidade dificilmente alcançarão bons resultados.
Estou seguro de que as cidades do amanhã não seguirão modelos ortodoxos de qualquer espécie. Elas irão reproduzir as características das sociedades estratificadas em seu território ao longo da história e as conquistas tecnológicas do mundo contemporâneo.
As incertezas futuras não podem servir de obstáculo para os avanços da sociedade em direção a um mundo mais humano e ambientalmente sustentável.