Neste artigo, Celso Rayol, presidente da Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura do Rio de Janeiro (AsBEA-RJ), analisa algumas questões que vieram à tona com a pandemia, na qual não somente vivenciamos um momento singular e nos conectamos “com o nosso espaço mais íntimo e a uma realidade esvaziada no contexto urbano”.
“Um cenário ainda não estabelecido totalmente, cheio de incertezas, que despertam um medo de se fazer qualquer movimento. O nosso mundo parou, e a nossa sociedade, vai mudar?”, questiona.
Boa leitura !
Urbe CaRioca
A arquitetura está presente
Celso Rayol é presidente da Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura do Rio de Janeiro (AsBEA-RJ)
Nos dias atuais, cada vez mais escutamos preocupações como: “Esta casa não bate sol!”, “O ruído da rua me deixa louco!”, “Poderia haver mais espaços abertos na cidade, não é?”, “Por que o transporte público é sempre lotado e inseguro?”.
Estes que já eram problemas da cidade, tomam outra proporção em um mundo de isolamento. Nesta quarentena, todas estas e outras questões vieram à tona. Estamos vivendo em um momento ímpar, onde cada vez mais nos conectamos com o nosso espaço mais íntimo e a uma realidade esvaziada no contexto urbano. Um cenário ainda não estabelecido totalmente, cheio de incertezas, que despertam um medo de se fazer qualquer movimento. O nosso mundo parou, e a nossa sociedade, vai mudar?
Vamos pensar primeiro na relação entre as pessoas e suas casas. Quem tem a possibilidade de fazer o isolamento, está tendo a oportunidade de vivenciar, de uma maneira mais intensa, o seu espaço privado. Aliás, mesmo aqueles que estão impossibilitados de se isolar, vivenciam mais desse lugar, devido à falta de atividades na cidade.
A casa passa a exercer o papel de abrigo, única opção de lazer, escritório, oficina, restaurante… Tudo dentro de um mesmo espaço. Esta, por si só, já é uma enorme quebra de paradigma social e evidencia de forma intensa, as relações que temos com nossos lugares e como os lugares nos afetam tanto de forma física quanto psicológica.
Outra pauta que fica muito evidente neste momento, são as questões sociais que se desenrolam no cotidiano das cidades. As pessoas que já viviam em situação precária/informal, sofrem com a ausência do movimento nas ruas, da onde tiravam seu sustento. Falta o básico como banheiros, locais para conseguirem alimento ou até tomar um banho.
A total ausência de um suporte eleva os mais vulneráveis a uma condição caótica para sua existência. Mais ainda, a falta de respiro, calçadas pequenas e espaços pautados no mínimo impossibilitam mais ainda a vivência dos espaços pelos riscos de aglomeração. Este cenário diminui empregos e aumenta mais ainda essa camada necessitada que não é atendida pela cidade.
Por tudo isso e muito mais, falar de Arquitetura e Urbanismo se torna cada vez mais essencial. Uma oportunidade para que o debate acerca do que produzimos alcance e transforme a população. Uma vez em uma banca projeto, um caro colega resumiu para o aluno a arquitetura como a norma social construída. Então, porque não aproveitar este momento para “atualizarmos” esta norma?
Talvez seja a hora de pensar na relação com a casa, valorizar as varandas, os espaços mais amplos e versáteis. Talvez, também, seja a hora de pensar a cidade de forma com que ela possibilite o acolhimento destas pessoas vulneráveis, possibilite calçadas mais largas, ou vazios urbanos qualificados aonde pessoas possam viver fora com maior qualidade e segurança.
Porém, tudo isso vai muito além apenas do olhar sobre a produção, passa principalmente pela revisão mais que necessária do papel do Arquiteto nas cidades. Para se mudar a maneira como produzimos, é preciso, de alguma forma, resgatar a imagem da Arquitetura e Urbanismo como parte importante não apenas do planejamento, mas na gestão das cidades. Cada vez mais o saber arquitetônico necessita sair das revistas e se democratizar, para que a população se conscientize e também possa cobrar do poder público a presença do nosso saber em seus governos.
É urgente a necessidade de soluções e projetos coerentes, não apenas as vontades políticas, mas as necessidades reais do povo. Entendo que com a evolução social, o olhar sobre as cidades tenha se expandido multidisciplinarmente e que exista uma natural diluição do que era o arquiteto planejador do início do século XX.
Falta, entretanto, a consciência de que ainda somos os profissionais formados para lidar e olhar o espaço, suas interfaces e questões, não apenas a estética. Por tudo isso, acredito ser este um bom momento de se reafirmar essa, que é nossa principal atribuição: o planejar, gerir e pesquisar a vida nos espaços e lugares das cidades.
Ainda não posso dizer ao certo se a sociedade mudará ou se a velha “norma” continuará a se perpetuar. Porém, acredito firmemente que as nossas práticas estão sofrendo transformações que valem ser analisadas e debatidas com carinho por todos nós, produtores de cidade.
Neste momento nos resta encarar os desafios e, de alguma forma, pensar tudo o que temos passado. Eu procuro fazer isso no meu “Diário de uma Quarentena”, uma série de charges publicadas em meu Instagram, onde apresento questionamentos e debates aproveitando ainda, para trazer um pouco de bom humor nesse momento.
Enfim, tenho fé que o fim dessa jornada possa ser extremamente interessante para se construir uma sociedade e cidades mais ligadas à escala das pessoas e que sejam pensadas por suas relações acima de qualquer outra questão. Uma sociedade que pensa e constrói para as pessoas, me parece o melhor caminho para continuarmos a evoluir.
Diário da quarentena – maio/2020, semana II
Desenhos de Celso Rayol