Mapa do zoneamento da cidade do Rio de Janeiro : Área Central e zonas Sul, Norte e Oeste na década de 1970 |
O blog Urbe CaRioca tem convidado os interessados a relatarem suas experiências e visões sobre os muitos bairros do Rio de Janeiro, histórias antigas e atuais, trazendo registros para serem compartilhados com os leitores. As memórias e o conhecimento da professora e socióloga Cleia Schiavo – que já nos brindou com O CINEMA E AS ORQUÍDEAS, entre outros artigos, nos remetem ao “Sertão Carioca”, como era conhecida a Zona Oeste da nossa cidade até à primeira metade dos anos 1900.
Boa leitura.
Urbe CaRioca
DE MAR A MAR, MODERNIDADE E TRADIÇÃO: CIDADE E CAMPO NO RIO DE JANEIRO
Cleia Schiavo Weyrauch
Do início do Século XX até à década de 1960 o processo de modernização que ocorria no Rio de Janeiro, a capital do Brasil, estimulado pelo capitalismo em fase de consolidação, exigia uma racionalização do espaço, das instituições, e uma revolução no corpo social da cidade. Consideremos o espaço de civilização às margens da Baía de Guanabara e o litoral do “sertão”, espaço interiorano banhado pelas águas da Baía de Sepetiba, além do Atlântico que, com a expansão urbana, emoldurava os bairros da franja litorânea da cidade:
Em outubro de 1905 o Correio Paulistano publicava, na sessão telegramas, o seguinte: “Na noite de domingo será feita a experiência de novas lâmpadas de iluminação elétrica na Avenida Central”. Uma semana depois outro telegrama anunciava: “Esperado da Europa (…) o automóvel encomendado pelo Sr. Dr. Lauro Muller, Ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas e no qual o Sr. Presidente da República inaugurará a Avenida, percorrendo-a em toda a sua extensão”. Outras notícias dão conta da modernidade que se introduzia no centro político do país. Temas como Calçamento, Arrasamento do Morro de São Bento, Obras no Porto do Rio, Caça aos Cães, Repressão à Mendicidade, e A Favor dos Vaqueiros preocupavam as autoridades. De fato, uma revolução ocorria no centro da cidade onde despontava a contradição entre tradição e modernidade. Bondes e trens cortavam a cidade em direção às retro áreas onde centros fabris se destacavam. No mundo da cultura a cidade fervilhava com as inúmeras companhias que traziam da Europa os acontecimentos de então. As trupes de Teatro e Ópera se sucediam!
Na outra ponta do Rio de Janeiro a baía de Sepetiba banhava o litoral do Sertão, território supostamente agreste e desconhecido da maioria da população. Foi lá nas terras do Sertão, a chamada Zona Rural desde 1918, que passei parte da minha infância e adolescência – experiência responsável por gerar um processo de investigação da região a partir de cenários guardados na memória.
A Memória tem uma dimensão ótica: é um cenário vivo com som, cheiros e cores, tem natureza afetiva, por vezes anedótica. Nela repousamos nosso cansaço e dela saímos renovados com a alegria e vitalidade de uma infância vivida intensamente. Mas, cada rememoração traz um detalhe a mais, complementado, de forma dissimulada, por conhecimentos adquiridos sobre o tempo raiz do qual nos lembramos. Talvez memória e ficção se confundam nesse interminável vai e vem de acréscimos.
O cheiro de infância que até hoje me cobre vem dos laranjais, dos pés de quiabo e berinjelas, das batatas-doces, cenouras, nabos e outros frutos da terra plantados no sítio dos meus avós em Inhoaíba, estação de trem que ficava depois daquela de Campo Grande. O sítio se localizava na então a Zona Rural do Distrito Federal, criada na época em que governava o Brasil o Presidente Wenceslau Brás. Hoje esta região integra-se à Zona Oeste do Município/Cidade do Rio de Janeiro. Em frente à porteira do sítio passava uma Estrada que chamavam de Real e dizia-se que por ali transitaram no século XIX imperadores e nobres com suas comitivas e lacaio que os serviam no Palácio Real de Santa Cruz. Na minha infância, década de 1940 do século XX, por essa estrada passava um pequeno caminhão que recolhia os legumes, hortaliças, e frutas produzidos nos sítios e enviados para venda nas feiras-livres, onde trabalhavam meu pai, alguns tios e tias.
O sonho da terra própria fez com que meu avô, um imigrante italiano se transferisse da atividade fabril na Gávea, onde era Mestre de Tear, para a ‘mata virgem’, como ele assim chamava a terra que escolhera para morar.
Na memória de infância surgem cenas de uma vida rural onde aparecem um cavalo e uma carroça, instrumentos de trabalho e lazer que circulavam nas redondezas à procura dos vizinhos amigos que habitassem próximos a rios e cachoeiras onde a meninada adorava tomar banho, e, acreditem, em água bem limpinha! Rios desciam da Serra de Inhoaíba, como o Rio Papagaio que atravessava nossa propriedade esfriando as mangas que caiam das mangueiras nascidas em suas margens. São muitas as lembranças, entre elas a de comer sobre um pano aberto na grama um delicioso aipim com melado, ou então espinafre com ovo frito e torresmos. Em ocasiões festivas, porcos passavam do chiqueiro aos pratos.
Principais ferrovias do Distrito Federal, 1930 |
A Estrada de Ferro Central do Brasil ia do centro da cidade ao Sertão a transportar produtos agrícolas e passageiros. Em 1878 o trem chegou à Santa Cruz onde se localizaria o Matadouro a partir de 1880 do século XIX. Em Cascadura onde morávamos, pegávamos com nossos pais o trem elétrico até Bangu fazíamos baldeação para Inhoaíba na “Maria Fumaça”, trem a vapor que ia até o Matadouro passando por Santíssimo, Senador Camará, Augusto Vasconcelos, e Campo Grande até o destino. À beira de cada estação existiam currais e barracões para guarda de animais de pequeno porte e cítricos que abasteciam tanto a cidade do Rio de Janeiro como as demais áreas do estado, e até do exterior.
Quando o percurso de Bangu ao Matadouro foi eletrificado, meu avô ficava à janela para controlar o horário dos trens que passavam. Naquela terra bucólica, onde cada vez mais se distanciava o lampião que iluminava fragilmente as pessoas cujos rostos eram complementados pela memória do dia. A luz elétrica, que só chegaria ao final da década de 1940, abafaria a luz das estrelas que iam muito além dos lampiões. Ai! E os vagalumes cintilantes a iluminar a casa em noites de lua!
Em alguns domingos no sítio, os adultos tomavam banho na Praia de Sepetiba, aonde íamos, de caminhão, brincar nas águas lodosas sem a terrível poluição que a marcaria no século XXI. Por aquele mar, me contaram, passaram piratas e corsários que invadiram a cidade do Rio de Janeiro, capital da corte do Império brasileiro e finalmente da República do Brasil até 1960.
Limites das Zonas Urbana, Suburbana e Rural com base no Decreto 1.185 de 05/11/ 1918
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A INVESTIGAÇÃO HISTÓRICA
A partir da memória conquistada, passei à investigação histórica, onde avaliei as situações lembradas através de documentos primários e secundários, Atlas existentes, censos agropecuários e outras fontes que enriqueceram o estudo. Extraí dos genealogistas excelentes dados que me fizeram recuperar a qualidade das relações locais nos primeiros 50 anos do século XX. Integrei à pesquisa teses já produzidas sobre o tema investigado da qual seleciono três aspectos, a saber: A Estrada Real e o Sertão, Economia e Cultura da Região e o terceiro chamado De Mar a Mar.
I) A ESTRADA REAL E O SERTÃO
A estrada Real surgiu de uma picada indígena posteriormente chamada de Caminho dos jesuítas que ia do centro da cidade do Rio de Janeiro até a redução jesuítica criada no século XVI, quando a sesmeira D. Marquesa Ferreira, viúva de Cristóvão Monteiro, doou aos jesuítas as terras que o marido ganhara em 1567 de Martim Afonso de Souza por serviços prestados durante a expulsão dos franceses. No início do século XIX, quando da transmigração da Família Real ao Brasil, essa Estrada ganhou o nome de Real, onde passava uma diligência que saía pela madrugada do Palácio Imperial de São Cristóvão e chegava entre 9h e 10h no Palácio de Veraneio de Santa Cruz.
Antes de 1918 a vida socioeconômica da região era controlada pelas ordens religiosas como o Curato de Santa Cruz e as Freguesias de Campo Grande e Guaratiba. O Sertão era um espaço de produção agropecuária, extrativista e até de seda.
Festa da Lavoura, Campo Grande, década de 1950 |
II) A ECONOMIA E A CULTURA
A região tinha na olericultura e na citricultura o seu forte. Os lucros com a carvoaria acabaram por devastar florestas face ao valor do carvão produzido. Na prática, sua pujança durou até meados da década de 1950, quando a crise da laranja trouxe um desgaste econômico. Em decorrência a terra foi se fragmentando, fazendo surgir os loteamentos urbanos e não mais sítios para o plantio. Restaram alguns como produtores de plantas ornamentais, coco e áreas de lazer. A cultura da laranja expandiu-se para a Baixada Fluminense, de onde eram também exportadas.
Do ponto de vista cultural, desenvolveram-se excelentes Escolas Rurais e também o Instituto Metodista Agrícola Ana Gonzaga. Até os clubes de futebol locais recebiam nomes como Flor do Sertão e Sabiá. Uma vez por ano comemorava-se em Campo Grande a Festa da Lavoura, onde desfilavam carros de bois com moças vestidas de camponesas. Na década de 1950 foi fundado em Campo Grande o Teatro Rural inspirado nas ideias de Paschoal Carlos Magno. Do ponto de vista político, essa região elegeu dois senadores: Otacílio Camará e Augusto Vasconcelos, e o Deputado Júlio Cesário de Mello.
III) DE MAR A MAR
O fim do ciclo da laranja abriu caminho para a urbanização definitiva da região com o apagamento gradativo dos traços rurais que a marcaram durante longos anos. A tímida urbanização das primeiras décadas do século XX deu lugar a partir de 1950 à especulação urbana em nome de interesses empresariais e do abandono da agricultura pelas instituições responsáveis. Um novo desenho da cidade se abriu com o Plano Doxiadis que apontou para a vocação industrial portuária da região da Bacia de Sepetiba. No governo Negrão de Lima foi criada a Zona Oeste, que incorporou a Zona Rural acrescida da área denominada de AP4 (Barra da Tijuca, Recreio, Jacarepaguá e adjacências). Em 1974 a Barra foi apontada como a nova centralidade da cidade: com a criação da Superintendência de Desenvolvimento da Barra da Tijuca – SUDEBAR surgiu uma nova frente urbana de classe média que continua a atrair novos moradores.
Com relação ao Polo Siderúrgico é bom lembrar que a COSIGUA foi fundada no governo Carlos Lacerda (1961), porém o desenvolvimento só aconteceu quando o Grupo Gerdau assumiu sua direção. Com a inauguração da Thyssen Krupp em 2010, a Cia. Siderúrgica do Atlântico, sem cumprir com os compromissos ambientais assumidos, provocou crimes ambientais de grande porte na área.
Internet |
Naquela outrora Baía de Sepetiba, espaço retaguarda da cidade do Rio de Janeiro, onde Fortes foram construídos para a defesa da nossa cidade, hoje cai uma chuva ácida e não mais a chuva que fazia exalar o cheiro da terra que sentíamos da porta da cozinha de nosso sítio.
Marcada por um baixo Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, a região da AP5 é hoje sede de imensas favelas e carece da atenção dos gestores públicos.
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Cleia Schiavo Weyrauch é Professora Colaboradora do Programa de Pós-graduação de Políticas Públicas e Formação Humana. Também é autora dos livros PIONEIROS DE NOVA FILADÉLFIA: RELATO DE MULHERES. EDCUS; e DEUS ABENÇOE ESTA BAGUNÇA: imigrantes italianos na cidade do Rio de Janeiro.
Imagens cedidas pela autora.
Boa noite, adorei sua postagem sobre Campo Grande.
Estava em busca de fotos da festa da lavoura para minha tese de doutorado e acabei chegando aqui. Será que teria como entrar em contato com a senhora e ver a possibilidade de usar algumas dessas fotos?
POr favor, deixo meu email de contato. danielmmartinscontato@gmail.com