Eles sabem tudo

A série de reportagens publicada pelo jornal O Globo em meados de 2024 sobre a criminalidade no Rio de Janeiro levaram-me a um passado relativamente recente, e a uma reflexão a respeito, escrita em 15 de julho passado sob o título ELES SABEM TUDO, na época não divulgada.

Neste início de 2025, mal chegamos à primeira quinzena do primeiro mês, e as notícias sobre assaltos, tiroteios e toda a sorte (para nossa má sorte) de balas perdidas que encontram inocentes, de comentários ouvidos em cada esquina, mercado e café, dando conta de que os problemas dessa natureza na nossa cidade são insolúveis, publico abaixo o texto referido, com base no ditado “A Esperança é a última que morre”, embora a propalada virtude junto com suas irmãs – a Fé e a Caridade – aparente estar em extinção na Mui Leal e Heróica Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, dita maravilhosa e carinhosamente chamada de terra dos cariocas – a maioria formada por verdadeiros heróis – , a completar 460 anos de sua Fundação no próximo dia 1º de Março.

Andréa A. G. Redondo / Urbe CaRioca

ELES SABEM TUDO

Andréa Albuquerque G. Redondo

“A vida na favela era tranquila. Eu era criança e ia sozinha da Marquês de São Vicente até a beira da Lagoa comprar peixe. Briga só de marido e mulher ou de bêbados no bar.” —  Tia Linda, depoimento a mim em 06/11/2004

Mapa mostra domínio territorial do CV, TCP, ADA e das milícias Divulgação

Há cerca de vinte anos assisti a uma palestra sobre segurança pública no Estado e na Cidade do Rio de Janeiro. O foco era o tráfico de drogas. A violência no Rio era de conhecimento geral, sentida na própria carne pela população diretamente atingida, ou vista nos noticiários. Os dados sobre a magnitude do problema e a extensão das áreas dominadas por traficantes foram impactantes. Dois aspectos, porém, marcaram-me profundamente naquele dia.

O primeiro foi a apresentação revelar algo tão ou mais assustador do que os tiros trocados entre facções. Políticos e especialistas – técnicos em segurança, investigação, armamentos, balística, e toda a sorte de estratégias relativas ao tema – sabiam tudo. Por “tudo” entenda-se a divisão dos territórios, os negócios envolvidos, e os nomes: dos chefes de cada grupo, seus “braços-direitos”, rivais e membros que pretendiam galgar postos mais altos. Na ocasião havia ocorrido uma dissidência no tráfico. Ouvi a alcunha da nova facção grupo, ainda fora da mídia.

De imediato, ocorreu-me a pergunta jamais feita. Se dispõem de todas as informações por que nada fazem para combater? Se agem, é de modo insuficiente? O agir ineficiente é deliberado, é jogar para a plateia? Existiria alguma ligação entre as partes, os teoricamente “mocinhos” e os efetivamente bandidos? O pensamento girava enquanto os mapas se sucediam.

As informações só apareceriam na grande imprensa cerca de seis meses depois. O espanto foi aliviado pela ideia de que, na época, eram informações confidenciais produzidas pela inteligência governamental, abertas apenas a grupos internos afins.

O segundo aspecto foi a intervenção de um colega ex-policial. Pediu a palavra para dizer que os estudos sobre a ingerência do tráfico na cidade desconsideravam o nascimento de outro grupo sobre o qual havia ciência – que comandava uma favela da Zona Oeste; que o modo de agir era diferente, igualmente dominador, mas, na área da prestação de serviços de obrigação do Estado e concessionárias; que o novo sistema, ao crescer, tornar-se-ia mais perigoso e lesivo do que o tráfico de drogas. Outro ouvinte acrescentou que o movimento novo estava sendo monitorado; que ainda não era nominado; que, em princípio, seria chamado de “milícias”; que a tal comunidade apoiava os milicianos porque eles impediam a entrada de traficantes na favela.

As milícias cresceram vertiginosamente.

Um jornal do Rio apresenta nestes dias, mais uma vez, reportagens sobre a situação dramática vivida na cidade. O alastramento do poder miliciano parece ter incomodado o sistema do tráfico, dando origem a uma guerra entre ambos para conquista territorial, domínio, e angariar recursos econômicos, como ocorre na maioria dos conflitos, mesmo quando o pano de fundo é religioso, ideológico ou étnico.

As guerras em geral têm começo, meio e fim. Na cidade que amo, e agora temo, não se sabe quando o conflito diário que domina e mata, terminará. O que se sabe é que eles sabem tudo.

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