Bom artigo do arquiteto, publicado no jornal O Globo de hoje: História do Brasil e do Rio de Janeiro, memória urbana, e um projeto de revitalização que está dando certo. Que se multiplique! Boa Leitura.
Urbe CaRioca
Washington Fajardo
A Praça Tiradentes é a prova de que é possível revitalizar espaços históricos. A perda de continuidade, no entanto, pode levar à perda de vinte anos de trabalho público
A Praça Tiradentes é o coração geográfico do Centro Histórico do Rio. Está equidistante a pé em relação à Lapa, à Cinelândia, à Praça Quinze, ao Porto ou ao Catumbi. Dispõe hoje de um tramo do VLT, que a conecta à Rodoviária, à Central do Brasil, ao metrô e à estação das barcas.
Uma praça eterna, da história da cidade e do país, marcada por fatos e personagens, e relevante para nosso futuro urbano.
É um dos lugares mais bonitos da cidade e com maior potencial de reocupação residencial. Nos últimos 20 anos, recebeu ações e inúmeros investimentos, bem sucedidos em sua grande maioria. Conta com um interessante mecanismo — um fundo —, capaz de conferir plenitude à revitalização. Um experimento que deveria ser replicado em outras áreas de valor de patrimônio cultural.
A transformação das centralidades históricas depende muito mais da continuidade das políticas públicas do que de soluções geniais. Executar planos e mantê-los relevantes é a chave do sucesso. Não tem mistério. Perseverança é o fundamento.
Miolo, este lugar foi limite do Centro colonial, quando denominado Campo dos Ciganos, no século XVII, após reorganização do vasto território chamado de São Domingos, que avançava deste ponto até o manguezal alimentado pelo braço d’água de mesmo nome, onde é hoje a Cidade Nova.
Ocupado por ciganos comerciantes, era um imenso espaço impreciso, não formalizado, um descampado longe das regulações e, por isso mesmo, aberto para outros povos e culturas, para a chegada de mercadorias e também de pessoas escravizadas. A logística do abastecimento do Rio colonial dava-se aí, donde partia-se aos sertões, pela Rua de Mata-Cavalos, atual Riachuelo, chegando até as terras altas da Tijuca, ou aos baixios das freguesias de Inhaúma e Irajá, e além. Em sentido inverso, ali atracavam e ficavam os homens brutos e rudes, constrangidos pelos muros das regras sociais da cidade. Lugar misógino, iria também sediar os cabarés, os jogos, os bordéis, e depois, os teatros. Nas costas orientais do Morro de Santo Antônio, mandava o profano.
O empenho dos governos em converter o lugar da balbúrdia popular em lócus oficial teve um marco de nascimento brutal. Nesta região, foi enforcado Tiradentes, após missa na igreja de Nossa Senhora da Lampadosa. Executá-lo junto ao denso populacho ofereceria lição fatal àqueles que sonhassem com a liberdade.
O nome atual viria com a República, em 1890, homenageando seu mártir. Antes foi Largo do Rossio, Campo da Lampadosa, do Polé, por causa do pelourinho instalado, e Praça da Constituição, quando Dom Pedro I, em 1821, no Real Teatro de São João, jurou lealdade à Constituição.
A vida pública era um teatro, não muito diferente de hoje. E o clímax deste ato foi a inauguração da monumental estátua equestre dedicada ao primeiro imperador, em 1862, feita pelo segundo. O projeto foi elaborado por João Maximiano Mafra, escolhido em concurso público, e executado em Paris por Louis Rochet, pupilo de Auguste Rodin. Representa os quatro grandes rios — Amazonas, Madeira, São Francisco e Paraná —, configurados na base por figuras de indígenas, animais reais e místicos, como dragões. Em 1865, mais quatro estátuas — Justiça, Liberdade, União e Fidelidade —, virtudes das repúblicas modernas, montariam a configuração final da praça, cujo cânone é clássico e puro: uma quadra vazia, de espaço público, cerrada por outras, que com suas edificações oferecem uma paisagem urbana definitiva.
Local dos teatros João Caetano e Carlos Gomes, próximos estão também o Real Gabinete Português de Leitura, o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, o Centro de Arte Helio Oiticica, a galeria Gentil Carioca e o Centro Carioca de Design. Há espaços de festas e escolas de dança, como o Centro Cultural Carioca. No Centro do Artesanato Brasileiro, o Crab, a exposição “Festa Brasileira”, de curadoria de Leonel Kaz e Raul Lody, com design de Jair de Souza, não se deve perder, arriscando-se não encontrar compreensão do que é ser brasileiro.
Ali estão os sebos, os botequins, os bilhares. Assim como imóveis públicos abandonados, como o do Detran. Ou infelizmente fechados, como a Estudantina.
Todo primeiro sábado do mês, ocorre a Tiradentes Cultural, uma ocupação gastronômica e festiva.
A recuperação da praça teve como impulso o Programa Monumenta, financiado pelo BID, com gestão do Iphan e do IRPH, que funcionou por dez anos e terminou em 2010. Mas deixou um legado. É a única área da cidade que conta com um fundo financeiro de fomento local, o Fundo Especial da Praça Tiradentes, legalmente constituído, podendo receber recursos públicos e privados com objetivo de incentivar a preservação e a conservação da região.
BNDES, Petrobras, Sebrae, Fecomércio, VLT, associações de empresários da área, companhias, bancos, mecenas poderiam ajudar neste momento, após tanto empenho e investimentos públicos.
A Praça Tiradentes é a prova de que a transformação da cidade implica em continuidade. Neste feriado, visite a praça e, se puder, ajude. Divulgue. Perder o Centro do Rio para o abandono é perder nossa identidade. E liberdade.
Confira a matéria no O Globo aqui.